
ENTREVISTA - ALDRI ANUNCIAÇÃO
REVISTA BOCA DE CENA 2015
Por. Luis Alonso-Aude
LUIS ALONSO. O conceito de dramaturgia está cada vez menos vinculado ao produto literário de um ser criador em solidão e mais ao tecido de ações que conformam o discurso cênico numa encenação. Qual a sua experiência no embate do texto escrito por você e o processo de encenação?
ALDRI ANUNCIAÇÃO. Concordo que a dramaturgia está cada vez mais associada ao processo de criação de uma tessitura narrativa resultante de diversas fontes criadoras, onde a palavra é apenas uma dessas fontes. No entanto aposto na ideia de que podemos preservar um lugar diferenciado para a palavra. A palavra agrega em si uma possibilidade imensa de sentidos, que se concretiza com a cognição do leitor. O primeiro leitor de um texto teatral é a equipe de montagem do espetáculo (diretores, atores, light designers, figurinistas, cenógrafos e técnicos). Esse confronto do texto com esses profissionais é o primeiro grande desafio enfrentado por uma peça teatral. E é um confronto que se dá através de um processo de leitura. Por isso costumo dizer que o texto teatral (para além do objetivo de ser montado) precisa antes de tudo ser um material que conquiste através da leitura, caso contrário, não desperta a vontade de uma equipe montá-lo. Um texto teatral agrega em si uma potencialidade literária, independente do seu confronto com um processo de montagem para o palco. E essa é uma das razões pelas quais defendo a ideia de publicação das peças teatrais, proporcionando a geração de livros de natureza literária. (REDUNDANTE) O que ocorre no processo de montagem de um texto, é a fisicalização do que acontece de forma abstrata no momento em que lemos um romance literário. Ao ler um romance (ou conto) o leitor ativa uma rede de sentidos que interfere na história narrada pelo escritor. Por exemplo, a fictícia aldeia de Macondo, descrita e criada pelo Gabriel García Márques no romance Cem Anos de Solidão, por conta do processo de recepção da obra, é diferente para cada leitor do escritor colombiano. Acredito que esse processo também acontece com a equipe de montagem de um peça teatral, principalmente na relação do texto teatral com o diretor artístico do espetáculo. O diretor enquanto regente da transposição das palavras para o palco, fisicaliza aquele processo de cognição pelo qual passa um leitor de uma obra romanceada. E esse processo provoca uma nova dramaturgia da cena, que pode agregar mais sentidos ao material cênico, e mesmo abrir possibilidades de geração uma terceira ordem de significados a partir do contato com o espectador que assistir ao resultado. Esse percurso de confrontos, eu pude perceber nas montagens dos textos Namíbia, Não! e de O Campo de Batalha. Cada diretor (desses textos) através de suas escolhas estéticas de encenação foi agregando significados e possibilitando aberturas de compreensão. Além de dramaturgo, geralmente funciono também como dramaturgista da minha própria obra, ou seja, o embate com a direção artística realmente acontece (risos). Procuro sempre entender o processo de interferência conceitual que o diretor traz para a montagem, e especificamente com esses dois textos (Namíbia, Não! e O Campo de Batalha) os diretores muitas vezes me consultavam sempre que precisavam interferir na instância palavra.
LA. Na sua peça Namíbia, Não!, o termo melanina acentuada soube combinar em bom grau denominação “racial”, simpatia, diversão, jocosidade. Fale-nos um pouco sobre esta criação.
AA. A pergunta matriz da peça Namíbia, Não! está diretamente relacionado à elaboração de identidade. Gosto de pensar essa questão étnica a partir do conceito formativo, mais do que afirmativo. A reconstrução da identidade é uma possibilidade que dinamiza as relações humanas, e atualiza as diversas informações que surgem anacronicamente na sociedade, colocando a identidade em um lugar de movimento, onde você pode moldá-la a partir dos deslocamentos. E falo isso desde os macro-movimentos históricos com seus êxodos e diásporas, até os deslocamentos de saída voluntária de troca de cidade, muito comum hoje em dia entre os jovens. O mundo precisa se deixar afetar por esses deslocamentos através da aceitação e recepção desse movimento. O termo “melanina acentuada” que criei para o espetáculo tenta reproduzir um pouco essa ideia de aceitação da dinâmica cultural, onde deixamos de ser o que éramos a partir dos movimentos. Brincar de encontrar um novo termo para se referir aos negros, traz em seu ato uma tentativa do pensamento de que estamos em constante mutação, e os rótulos muitas vezes se desfazem, e naturalmente se refazem a todo instante. Lembro que em uma das 300 apresentações que fizemos ao longo de quatro anos de temporada, um espectador nos procurou ao final do espetáculo e fez questão de dizer que possuía melanina acentuada, mas nunca tinha se pensado como negro. Ou seja, o termo “melanina acentuada que usamos no espetáculo acaba agregando mais pessoas nessa questão político-social que é o racismo. Esse tipo de inclusão de pessoas nesse questionamento étnico, penso ser muito importante para o fortalecimento de uma rede contra o segregacionismo. O teatro pode contribuir em muito para uma sociedade mais interessada em repensar seus mecanismos de organização. O teatro pode ter um poder político transformador de grandeza imensurável, pois ele vai direto no consciente e subconsciente do espectador.
LA. Há uma denominação universal para o termo Teatro Negro bem diferente de um Teatro que guarda estreita relação com temas “raciais”-culturais. Nesta segunda denominação poderia nos falar o que é Teatro Negro na atualidade miscigenada e globalizada?
AA. O Teatro Negro é uma questão que me inquieta bastante (positivamente). O que seria o Teatro Negro? Um teatro feito por pessoas de “melanina acentuada”? Um teatro com temática que remonta às culturas de matrizes africanas? Um teatro cujo público é formado por negros? Ou não seria nada disso? Gosto de levantar essas questões, sobretudo em um evento chamado Nova Dramaturgia da Melanina Acentuada (que criei em São Paulo em 2012 no Teatro Eugênio Kusnet, e já segue para sua terceira edição com a Ocupação FUNARTE do Teatro Dulcina no Rio de Janeiro, que ocorrerá de agosto a novembro de 2015). Esse evento tem um foco na questão da dramaturgia escrita por autores negros, catalogando e colocando em cena trabalhos de novos autores negros. As análises da presença do negro no teatro são quase sempre voltadas para a questão da performance no palco. O objetivo principal do Nova Dramaturgia da Melanina Acentuada é deslocar um pouco esse pensamento, e analisar a presença do artista negro na escrita. Refletir e desvendar o artista negro criador do produto literário do espetáculo, não somente na nossa atualidade, mas também no aspecto da historiografia do teatro negro. Esses encontros focados nessa linha de pesquisa dramatúrgica, tem promovido algumas descobertas, como por exemplo, a não creditação como autor (por parte da imprensa midiática brasileira dos anos vinte do século passado) do Monsieur De Chocolat. Monsier De Chocolat, apesar da insígnia afrancesada, foi um mulato baiano que morou em Paris naquela época, e retornando ao Brasil fundou a Companhia Negra de Revistas. No década de 1920, o teatro musical de revista era uma das formas mais populares de entretenimento no Brasil, e De Chocolat obteve bastante repercussão na época com a sua companhia, a qual agregou nomes como o de Pixinguinha na parte musical e o de Grande Othelo no corpo de atores. Muitos pesquisadores assinalam esse episódio como a primeira tentativa de teatro negro no Brasil. Na sua Companhia Negra de Revistas, o (baiano) Monsieur De Chocolat assinava a autoria de diversas cenas e quadros dos seus espetáculos, mas há uma forte suspeita de que a imprensa midiática da época omitia que o De Chocolate escrevia suas obras, colocando-o mais como articulador performático de cenas, e apagando rastros de sua autoria na historiografia teatral brasileira. Isso se deve muito ao fato de a palavra ter um lugar de destaque e de nobreza na hierarquia das artes, e muitas vezes o protocolo social não permite fazer (ou refazer) essas associações, onde uma pessoa de melanina acentuada estaria ligada ao universo restrito da arte das palavras. Outra questão que surgiu nessas edições do Nova Dramaturgia da Melanina Acentuada é a constatação do reduzido espaço reservado ao estudo de uma tentativa de formatação de um teatro negro nas ementas acadêmicas das universidades brasileiras, onde o assunto muitas vezes é apenas citado de forma ligeira, prescindindo sempre de iniciativa de estudantes e pesquisadores que alertam para essas lacunas de estudos. No entanto penso que a classificação de um teatro brasileiro é ainda uma tarefa precipitada. Alguns pesquisadores sugerem até que nem exista um teatro brasileiro, mas sim tentativas de um teatro nacional. Já participei de rodas de discussões onde concluímos que não temos um teatro brasileiro verdadeiramente constituído. Todos os nossos movimentos teatrais foram tentativas de reprodução de algo feito lá fora, que de certa forma foram afetados por nossas singularidades temáticas e culturais, mas não se concretizaram efetivamente em um teatro brasileiro. Um exemplo disso é nosso desejo (ainda hoje) predominante de se buscar autores e textos internacionais para serem montados aqui, numa quantidade desproporcional em relação aos jovens autores e dramaturgos nacionais. Acredito que isso é uma herança histórica, e reitera a ideia de que não temos nosso teatro devidamente constituído. Não estamos nas condições ideais de logísticas de produção e os recursos para o teatro ainda é uma questão embrionária no Brasil, tanto na instância pública quanto na privada. Ainda não sabemos ao certo (por exemplo) qual a fonte ideal de recursos para a produção do nosso teatro. Então fica muito difícil se falar em um teatro brasileiro constituído, a não ser a partir de uma visão ufanista e apaixonada da questão. Quando nos reportamos para a questão do teatro negro, essa problemática se agrava ainda mais pelas questões étnicas persistentes em nosso país. Apesar de tudo, ainda acredito nas tentativas históricas que foram promovidas na crença de uma possibilidade de teatro negro brasileiro, e nas suas consequências positivas e referentes para nós jovens fazedores de teatro. E penso que existe também uma tentativa de descentralização temática desse teatro negro, para além das questões étnicas, tangenciando questões como a afetividade, e apostando na aceitação de nossa multiplicidade cultural.
LA. É muito difícil definir a qual “raça” cada um pertence sendo um fenômeno gerado pela mistura incessante e profunda que marcou o percurso histórico brasileiro, optando assim pela denominação de identidade, aquilo que nos une e reúne como etnos-nação. Sendo você um artista, um escritor, um poeta, poderia nos dizer qual a sua opinião sobre o binômio “raça” x identidade?
AA. Penso o binômio entre essas palavras como um contra-senso. São palavras que pertencem a sentidos de grupos diferentes, e correlacioná-las tende mais a confundir, do que solucionar. Raça está mais associada à questão biológica, e na conjuntura atual, não contribui para as questões socioculturais. A palavra raça é pouco dinâmica, não permite a mobilidade de sentidos e deslocamento de pensamento que possa promover uma harmonização social. Apesar de ser uma palavra bonita, a palavra raça pode nos levar a uma absolutização perigosa, e tudo que não precisamos na conjuntura atual é de absolutismo. A palavra identidade possui uma potencialidade agregadora, pois a identidade é algo que se pode reconstruir. A minha identidade é resultado das minhas andanças e escolhas. A identidade pode ser positiva ou negativamente afetada pelas ações sociais e pelas relações humanas. Podemos falar em resgate de identidade e de interferência na mesma através da educação. Não consigo ver essa amplitude na palavra raça, e talvez por isso ela me atraia menos do que a palavra identidade. A palavra raça é de uma natureza estática; a palavra identidade é de uma natureza maleável. Acho que a escolha de palavras maleáveis é muito importante, não somente para as artes, mas para a sociedade como um todo.
LA. Na Literatura, na Poesia, nas Ciências, na Filosofia, na Política, você poderia citar quais seriam suas possíveis inspirações “negras”?
AA. Minhas inspirações negras são meus avós, minha mãe, meu pai e meus irmãos. E entenda isso de modo literal e , ao mesmo tempo, metafórico!
LA. Qual o significado que você atribui à palavra preconceito e qual a sua opinião sobre o uso da mesma nos dias atuais?
AA. Já cansei de entender e ouvir a palavra preconceito, como uma preconcepção de algo, ou uma conclusão precipitada de alguns valores culturais. Acho que já devemos ir direto ao ponto, e entender a palavra preconceito já como algo danoso que fere os cantos mais íntimos do ser-humano. Também estou um pouco impaciente com essa história de que muitas vezes não percebemos os nossos preconceitos. Percebemos, sim! O difícil é lidar com o fato de que os possuímos. Estou aqui falando do preconceito em todos os sentidos. A sociedade já está com a “idade” suficientemente avançada, e não convence mais dizer que não sabe logisticamente onde atua preconceituosamente. Acontece que tem algumas mudanças que demandam custos financeiros, e ela (a sociedade) coloca o valor financeiro em primeiro lugar na lista dos objetivos primordiais de funcionamento. A questão do preconceito atualmente é uma questão de “business”; deixou de ser cultural.
LA. Percebo que a denominação afro-descendente ligada estreitamente ao termo criado por você –melanina acentuada-, é um pouco estranha no uso brasileiro, uma vez que África é um continente composto por países de diversas culturas. Qual a sua opinião sobre esta constante procura pela “denominação adequada” tentando classificar os seres humanos a partir da cor da pele?
AA. Sim, a África é um continente composto por diversos países, e isso talvez até explique as diferentes visões de mundo existentes entres os negros do mundo inteiro, inclusive aqueles filhos da diáspora. Saímos da África, mas obviamente carregamos nossas qualidades ascendentes em algum lugar de nossas humanidades. Nem todos os negros diaspóricos do mundo vieram do mesmo país africano. Então uma inutilidade querer encontrar ou pregar uma semelhança intercessiva entre os de melanina acentuada. Isso seria o mesmo que achar que todo europeu pensa igual. E acho até muito rica essa diversidade entre nós negros. Talvez até caiamos nessa cilada, e desprezamos essa diversidade de nações africanas; não acho saudável passar por cima dessa diversidade. No entanto, o fato histórico da diáspora nos une. E isso também deve ser oportunizado, por isso acho que devemos encontrar esses laços, sem esquecer as singularidades de cada origem. É uma relação de maturidade que devemos ter com essa questão da nossa ascendência africana, a partir de três pontos fundamentais: (1) o fato diaspórico que nos une (2), a diversidade cultural daqueles países que compõe o vasto continente africano e (3) nos entendermos também como pertencentes legítimos do local destino do processo da diáspora. Acho que essa articulação pode gerar uma riqueza de pensamentos e de práticas. No entanto a questão de tentativa de encontrar um termo mais adequado para a classificação dos seres humanos a partir do tom da pele, entendo como uma tendência do nosso mundo pós-moderno de demarcar territórios intelectuais a partir de critérios superficiais. A superfície de minha pele fala muito de minha genética, mas o fato é que que as diversas camadas de nosso conjunto imaterial de saber e de experiências (e experimentações) de vida identifiquem muito mais a persona de um indivíduo; e essas outras camadas que existem (para além da pele) não podem ser desconsideradas pela sociedade. E é por aí que entra a provocação do termo “melanina acentuada”. A questão da identidade fica muito mais interessante, quando saímos da superfície (do superficial).
LA. Se fala muito hoje de um espaço da memória e de uma linha tênue entre vida e arte nas produções artísticas, no entanto sejam quais forem as denominações o Teatro, especialmente, é aquele que acontece em comunhão e com vida própria. O sustento e material (??) do seu trabalho guarda relação com esta realidade e esta memória?
AA. Sem dúvida acredito nessa relação entre minha vida e as articulações do teatro que me proponho a fazer. Teatro é uma arte que exige muita energia, tanto no planejamento quanto na execução. E o que fomenta essa energia é antes de tudo uma sinceridade em relação aquilo que você está expressando e a vontade de falar aquelas palavras. Acredito na ideia de que se você não tem algo pra dizer, o ideal é não fazer teatro. A não ser que você queira anacronicamente falar sobre o vazio do “não ter nada a dizer(risos). Tenho descoberto que através da escrita (texto e direção) para o teatro, fisicalizamos memórias que estavam escondidas em nós mesmos. E talvez não somente na escrita, mas também na atuação no palco, despertamos e acessamos essas memórias. E dessa forma tudo ganha sentido ( e razão de ser ) na cena. O teatro é uma simbiose maravilhosa entre a nossa vida e a estética.
LA. A responsabilidade de uma gestão preparada em arte e cultura foi delegada nas mãos de comissões que aprovam projetos periódicos através de editais ao invés de gerar políticas de manutenção a longo prazo. Qual a sua opinião sobre este assunto?
AA. Compreendo a necessidade urgente de criação de políticas públicas que favoreçam a manutenção a longo prazo de iniciativas e projetos teatrais, assim como de grupos e companhias que tem uma função importantíssima no desenvolvimento de pesquisa de linguagens associadas diretamente ao mercado trabalho e à experimentação com restrito público que ainda absorve uma peça teatral enquanto meio eficiente de entretenimento e de reflexão sobre a humanidade. Penso que devemos focar nessa demanda de manutenção a longo prazo dessas iniciativas. No entanto, o processo dos editais tem uma função que acredito ser transformadora na administração dos recursos destinados à cultura nacional. Os editais funcionam como um canal democrático e supostamente baseado na meritocracia de projetos apresentados, e sua avaliação ocorre sempre através de um rodízio de comissões. Essa alternância de avaliadores de projetos é muito interessante, pois os critérios de aprovação sempre se atualizam e se renovam a cada rodada de comissões. Essa diversidade de critérios deve ser bem-vinda nas análises de projetos. Outro ponto que considero positivo nos editais, é a possibilidade de disponibilizar a verba pública para variedades imensas de artistas, que de outra forma não teriam acesso a recursos para a realização de seus projetos. Eu me considero uma dessas pessoas. Meus projetos e textos são de longa data já existentes, mas somente após o advento dos editais eu consegui por em prática alguns desses projetos. Penso que se não fossem os editais, eu nunca conseguiria publicar o meu primeiro livro, por exemplo, que é um drama de teatro de ideias. Dificilmente uma editora apostaria (espontaneamente) na publicação de um livro de um autor estreante e ainda com as características aqui citadas. No entanto, com o advento dos editais, consegui publicá-lo e ainda ser laureado com um primeiro lugar do Prêmio Jabuti de Literatura, trazendo para a Bahia um prêmio de ficção literária antes somente conseguido por Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro e Wally Salomão, e colocando a EDUFBA (Editora da Universidade Federal da Bahia) na lista de editoras que contemplaram um Jabuti de Literatura da Câmara Brasileira do Livro. Quer dizer, quantos projetos estariam engavetados e sem acesso ao público, caso não tivéssemos essa possibilidade de interface direta, onde o artista faz a gestão de uma verba pública, de acordo com um cronograma burilado por ele próprio e expressando pensamentos nos quais ele acredita? O que talvez devamos pensar agora, são formas de manutenção desses projetos que ganharam esses aportes iniciais e que possuirão demandas diferenciadas de sequência de suas práticas. Não acredito que a solução é eliminar a política de editais, mas sim realizarmos um passo adiante, agregando outras possibilidades de acesso aos recursos públicos destinados à cultura. Outra questão que preocupa é a não contemplação de projetos habilitados nesses mesmos editais, mas que ficam na suplência por falta de recursos suficientes. Já tive diversos projetos também nessa situação, e acontece uma sensação estranha de impotência, quando você percebe que o projeto tem qualidade artística para execução, mas o dinheiro destinado ao setor não foi suficiente. Pelo tempo em que o sistema de editais é aplicado, já existe uma média de número de projetos que tem excelência artística para execução. A questão é que a verba destinada ao setor cultural ainda não está no seu valor adequado a essa demanda de projetos capacitados para estarem em execução. Penso que as instâncias públicas devem tentar procurar equalizar o número de projetos habilitados ao número de projetos selecionados. Essa disparidade entre esses números (de habilitados e de selecionados) tem causado uma animosidade entre os profissionais da área. Isso não é saudável para a geração e estímulo de parcerias entre os profissionais artistas, e é uma situação provocada pelo próprio sistema de editais; portanto esse mesmo sistema deve procurar uma forma de sanar a questão.
LA. O Balé e a OSBA tem produtos artísticos desafiadores e cada vez mais diferenciados como resultado de uma já longa trajetória de anos de manutenção e condições ótimas de trabalho. Você acha que a cena das artes local poderia se enriquecer se existisse uma Companhia Teatral trabalhando permanentemente nas condições que o Balé e a Sinfônica do TCA trabalham ? Estas condições não deveriam ser estabelecidas para a maior parte dos criadores baianos-brasileiros?
AA. Eu sempre me perguntei sobre isso, desde os meus tempos de universidade, e também nos períodos em que fiz estágios de dramaturgia em alguns Stadttheater (teatros públicos de cidades da Alemanha), onde cada teatro compunha seu ensemble (grupo de atores e diretores contratados). E já ouvi diversas explicações para o fato da não existência de uma logística de manutenção artística semelhante ao BTCA e OSBA, para uma companhia de teatro na Bahia. Confesso que nenhuma das justificativas as quais eu tive acesso me satisfizeram. Isso se configura uma lacuna e uma atitude diferenciada para com o teatro baiano. E o que torna mais incoerente essa questão, é que ao fazermos um percurso histórico, é notável a importância do teatro baiano para o fomento da cultura nacional algumas décadas lá atrás. Tenho a impressão que algum momento da história de nossa administração pública trabalhou-se com a ideia de boicotar o teatro, e criaram-se argumentos burocraticamente justificáveis para se evitar a criação de uma companhia teatral mantida pelo estado. Acho que é momento de se revisitar esses critérios, e iniciar de imediato ações que caminhem na direção de criação de uma companhia estável de teatro mantida pela instância pública; e assim ajustar e reparar essa lacuna. Claro que isso obviamente iria demandar um estudo para se encontrar o formato adequado de acesso e formação da companhia, e de que maneira ela contemplaria os profissionais de teatro. Mas isso é uma demanda que precisa ser resolvida logo, e poderá injetar fôlego no teatro baiano.
LA. Você tem algo a falar sobre o auto-preconceito?
AA. Não acredito que pessoas tenham preconceitos contra si próprias. (mesmas) Alguma articulação social acontece que faz com que isso se processe no indivíduo. Penso sim, que uma grande parcela da nossa população carece de uma educação, e quase todos nós prescindimos de uma educação artística mais intensa. Essas deficiências de educação é que promovem um involuntário auto-preconceito, que costumo denominar de auto-boicote induzido e inconsciente. Se promovermos a consciência (através da educação artística), com certeza o auto-preconceito será algo inexistente na nossa sociedade.
LA. Algo mais a dizer aos criadores e artistas baianos de melanina acentuada e não tão acentuada ? (risos)
AA. Algo mais a dizer? (risos) Acho que tudo isso que falei ao longo dessa entrevista se constitui um diálogo com meus colegas artistas e com as instâncias administrativas que estão direta ou indiretamente ligadas ao teatro. É sempre bom lembrar que as ideias (principalmente as minhas) não estão engessadas. Adoro um bom bate-papo sobre esses assuntos, e me regozijo quando sou realmente convencido a mudar de ideia! (risos)