
DRAMATURGIA BRASILEIRA NA BAHIA
REVISTA BOCA DE CENA 2011
Autora. Cleise Furtado Mendes.
Talvez daqui a uns dez anos, quando dados suficientes forem reunidos e publicados, possa ser escrita uma história do teatro e da dramaturgia brasileira que afinal contemple os muitos mundos que engendram este país. Então poderá revelar-se um caleidoscópio de manifestações artísticas que abrange uma variedade surpreendente de formas e tendências. Por enquanto, a bibliografia existente, com pouquíssimas exceções, concentra-se na produção de textos e espetáculos do Rio de Janeiro e de São Paulo. Para ampliar e modificar esse quadro, contamos hoje com duas espécies de iniciativa: a primeira é a realização anual de cerca de 20 festivais de teatro, em vários estados brasileiros, promovendo a vital circulação de espetáculos e o encontro entre grupos e artistas das diferentes regiões; a segunda é o desenvolvimento de pesquisas que aos poucos vão mapeando a diversidade do cenário teatral brasileiro.
Como referências para o segundo caso, temos, por um lado, convênios entre universidades, do norte-nordeste ao sul do país, permitindo o trânsito de estudantes e o necessário intercâmbio de informações para que, também no teatro, o Brasil possa se conhecer de corpo inteiro. Por outro lado, as pesquisas vão operando deslocamentos no conhecimento existente e produzindo peças para o futuro mosaico da nossa diversidade teatral. Para ilustrar essa perspectiva, cito apenas dois exemplos recentes: a publicação, pela EDUFBA, em 2008, do livro de Jussilene Santana intitulado Impressões Modernas – Debate sobre Teatro na Cobertura dos Jornais A Tarde e Diário de Notícias (1956- 1961), que investiga o comportamento da imprensa baiana nos anos que se seguiram à criação da Escola de Teatro da UFBA e, em 2009, da obra Transas na Cena em Transe – Teatro e Contracultura na Bahia, de Raimundo Matos de Leão, que se debruçou sobre um dos mais controvertidos períodos da arte brasileira – os anos 70 – para reconstruir o itinerário surpreendente da convivência dos nossos artistas com a censura e a repressão política, assim como das estratégias criativas que usaram para driblar essa época sombria e manter acesa a luz dos refletores.
Enquanto os estudos prosseguem, o único consenso que parece existir é a percepção de que o teatro que aqui se faz, desde a década de 1980, cresceu e diversificou-se, ganhou novos espaços, atraiu produtores e conquistou seu público. Visto que, a cada temporada, ainda há uma lenta e difícil conquista de apoios e patrocínios, chega a ser surpreendente o vigor que a cada ano exibem nossos palcos, com uma atividade contínua de montagem de espetáculos, de vários estilos e tendências, num ritmo crescente de profissionalização, embora nem sempre apresentando concepções criativas e o necessário apuro técnico.
Há pouco mais de duas décadas, além da tenacidade e ousadia criativa de nossos artistas e técnicos, alguns fatores vêm contribuindo para transformar o antigo quadro. Os programas de apoio oficial, sobretudo os editais de montagem de espetáculos; a conquista, para o teatro, de muitos produtores independentes (antes concentrados na área de música), com projetos que favorecem a circulação de manifestações artísticas pelo interior do estado; a realização anual de cerimônias de premiação, nas quais a vitória, sempre, é de todos os artistas cênicos baianos; o patrocínio direto de espetáculos por pouquíssimas empresas de grande porte, mas também o apoio indispensável de dezenas de restaurantes, academias, clínicas de saúde e estética, lavanderias, super-mercados; casas de espetáculos transformadas em centros não só de produção, mas de formação de público, abrigando grupos residentes e oferecendo sessões especiais com ingressos a preços populares; a inauguração de novos teatros, mantidos por escolas e faculdades particulares; o ensino e a formação artística aliados à pesquisa.
Por mais que tenhamos críticas, justas e procedentes, aos programas e projetos aqui lembrados, dentre outros, basta visitar qualquer cidade brasileira, em qualquer outro estado em que tais ações estão ausentes – isso é fácil, pois constituem a maioria em nosso país – e conviver um pouco com as demandas frustradas dos artistas de teatro, para então perceber o que representam tais iniciativas. Tive a oportunidade de trabalhar em algumas dessas cidades, e conheci atores, dramaturgos, cenógrafos, diretores, alguns de inegável talento, todos trabalhando e convivendo com o fato, para mim surpreendente, da inexistência de um único projeto oficial de apoio a montagem de espetáculos! Minha surpresa aumentava ao perceber a ausência até mesmo de críticas a essa situação. Esses artistas continuavam a trabalhar, a produzir suas montagens de pequeno porte, para um público reduzido, sempre na espera ansiosa de alguma luz no fim da cena. Ah! Sim, muitos sonhavam vir para a Bahia.
Além da manutenção de uma média quantitativa, a produção de espetáculos vem ganhando também em diversidade. Há convivência de gêneros, estilos, concepções de encenação. Isso se comprova com uma rápida olhada nas últimas temporadas. O leque de opções vai de musicais populares a remontagem de clássicos, de brincadeiras clownescas a peças claustrofóbicas, sombrias, de comédias urbanas absurdistas a sagas sertanejas. E há uma razão propriamente histórica para que eu esteja reiterando a importância dessa diversidade. No início dos anos 90, algumas companhias teatrais baianas alcançaram grande repercussão nacional, com espetáculos que obtiveram premiações e louvações da crítica no sul do país. Tais montagens apresentavam, como denominador comum, certas características que viriam a ser identificadas, seja por observadores externos seja por críticos locais, como marcas de um teatro “tipicamente baiano”: uso de recursos cômicos do tipo farsesco, referência constante à música popular e a fatos e figuras da vida baiana, comunicação direta com o público, com disposição cênica frontal, no estilo “show de humor”.
Essa forma de espetáculos, por sua eficiência na imediata captação da platéia e por sua vocação para uma comicidade histriônica, logo foi classificada sob o rótulo de um gênero “surgido” no sul do país na década de 80 e que desde então dividia a crítica teatral: o besteirol. Alguns críticos foram taxativos em seu repúdio: “Tenho pelo besteirol indisfarçável horror”, confessou Sábato Magaldi. Mas outros começaram a defender, provocativamente, um “rir sem culpa”, como fez Nélson de Sá, crítico da Folha de São Paulo, por ocasião da tournée nacional de A Bofetada, em 1990 (comédia-farsa baiana cujo principal atrativo era um elenco de excelentes atores travestidos).
Bem ao gosto dos anos 90, “gêneros” são inventados a cada nova temporada ou mesmo a cada novo espetáculo. Para boa parte do público, pouco importava que essa forma de comédia fosse ou não uma novidade; ela divertia, e isso bastava. Mas não deixa de ser estranho que os críticos se referissem (ainda se referem) ao besteirol como a um recém-nascido. No que diz respeito às discussões sobre seu valor artístico, não compreendo porque se deva tomar o besteirol por algo mais nem menos do que aquilo que ele assumia ser. Ou seja: uma variedade de comédia ligeira, feita para um público urbano, retomando e recriando, ora com mais ora com menos eficácia inventiva, elementos antigos e mesmo arcaicos da tradição; sobre uma estrutura geral de farsa, um pouco de grotesco caricatural, outro tanto de vaudeville, uma pitada de sátira e farto tempero de gags, podendo tal mistura ser tanto genial quanto cansativa. Nos temas, a atualização fica por conta sobretudo das referências jocosas à cultura de massa, de programas televisivos ao último imbróglio da cena política.
Mas o que importa, para o momento, é perceber a transformação ocorrida em pouco mais de uma década e meia: se, pelo estrondoso sucesso de algumas produções, na primeira metade dos anos 90 o teatro baiano chegou a ser percebido como sinônimo de teatro besteirol adaptado às referências locais, hoje mesmo o crítico menos generoso seria levado a constatar a existência de um cenário bem diverso. Como um dos principais fatores dessa mudança, destaco o surgimento, desde o início dos anos 90, e mesmo um pouco antes, de uma produção local de textos para cena que contribuiu decisivamente para dar ao nosso teatro o vigor e a diversidade a que acima me referi. São diferentes autores, de temáticas díspares, experimentando e reinventando formas de escrita dramatúrgica, que têm talvez como único traço em comum a vontade de falar para espectadores de seu próprio espaço-tempo.
É por essa razão que deixo, por ora, os muitos fios da trama de acontecimentos e iniciativas que engendraram o nosso cenário atual para destacar apenas um fenômeno que vem se tornando visível para mais e mais observadores: a existência de uma geração de dramaturgos baianos, surgidos a partir dos anos 90, que souberam imprimir, à produção cênica local, um ritmo e um colorido específico. Diferente do que acontece com poetas ou romancistas, os dramaturgos raramente escrevem “para a gaveta”, ou seja, para uma futura e sonhada publicação. Dramaturgos são seres movidos pelo aqui e agora do seu ofício: escrevem para as possibilidades concretas de encenação. Assim, à medida que a produção de peças, em Salvador, conquistou seu espaço e seu público, novos autores foram atraídos para a perspectiva de dar a sua palavra às nossas artes cênicas. Ao comentar suas trajetórias, é difícil esconder minha satisfação pessoal por constatar que boa parte desses autores principiou a exercitar a escrita para o palco em minhas aulas de dramaturgia na Escola de Teatro da UFBA, e por ter tido o privilégio de assistir ao parto de muitos dos textos que mais tarde viriam encantar e divertir o nosso público, através de encenações profissionais.
Por ordem de entrada em cena, o mais velho dessa turma é CLÁUDIO SIMÕES. Desde o início dos anos 90, com a leitura de sua impagável Trilogia Shirley, soube estabelecer imediata cumplicidade com seus primeiros espectadores – colegas e professores – por sua habilidade em satirizar as tramas novelescas, os lugares-comuns do melodrama burguês, lançando um olhar de lince sobre os jogos que sustentam os pactos familiares. Os textos que se seguiram foram definindo e precisando uma dramaturgia que dá expressão (talvez como nenhuma outra, entre nós) ao comportamento das novas gerações diante dos deslocamentos a que foram submetidos, no mundo contemporâneo, os valores que alicerçavam o charme discreto da ordem burguesa. A "hybris" de suas personagens são as emoções baratas e descartáveis, seu "pathos", o ceticismo, a in-diferença. O recurso principal é a paródia, a retomada irônica de temas, gêneros, convenções. O hilário Quem Matou Maria Helena? (1994), por exemplo, é construído a partir de uma lógica “pelo avesso”, que brinca com a seriedade dedutiva dos policiais clássicos. Abismo de Rosas ou Quem Não Ama Não Mata, estreou em 1997, sob a direção de Fernando Guerreiro e, além de sucesso de público, obteve o Troféu Bahia Aplaude de Melhor Autor daquele ano. Nessa peça - que desde o subtítulo revelador cutuca irreverentemente o "bom-mocismo" do politicamente correto - Cláudio Simões enfrenta um belo desafio de carpintaria dramática: três atores interpretam seis personagens, numa sucessão de entradas e saídas que imita, criticamente, o vai-e-vem do vaudeville. O mesmo diálogo ágil e desconcertante, que gera situações bem reconhecíveis do nosso tempo/espaço, vamos encontrar em Nada Será Como Antes. Nessa “peça de grupo”, as personagens são sobretudo transeuntes, elas sempre “estão indo” – para o bar, para a escola, para a praia – e enquanto se deslocam encenam sua própria demanda de afeto, de aceitação, de “enturmação”. Ou, para usar a deliciosa expressão de uma personagem de Silveira Sampaio (comediógrafo brasileiro dos anos 40 e 50), elas estão atrás de seus direitos “psico-sexo-sentimentais”, e deles não abrem mão. Olhando de perto, elas não estão sequer "em relação", na forma dramatúrgica tradicional; estão "linkadas", conectadas em rede cambiante, e podem mudar de roupa e de idéia a cada cena, reencontrando-se em novas configurações.
ELÍSIO LOPES JÚNIOR levou, em 1999, o público das praças do Pelourinho às gargalhadas com Os Pecados de Vênus, sob direção de Elisa Mendes; uma comédia que alcança algo que à primeira vista é tão simples, mas de tão difícil execução, e que talvez seja o sonho de todos os dramaturgos: produzir um espetáculo popular sem renunciar à inteligência. Elísio começou exercitando-se com textos infanto-juvenis, como O Mistério do Chiclete Grudado, Pontapé, Tito - O Sonhador, passando depois a enfrentar, com sucesso, tarefas mais "adúlteras", como a excelente adaptação de contos de Nelson Rodrigues que resultou em Carne Fraca. Aliás, a adaptação de textos sempre se mostrou uma importante "escola" para os dramaturgos de qualquer época, e Elísio soube tirar partido disso, mais de uma vez, como em Over Duplo, uma releitura da Comédia dos Erros, de Shakespeare (que por sua vez é a reescritura elisabetana de Os Gêmeos, de Plauto). Em Prisioneiros da Balança (1998), também sob a direção de Elisa Mendes, temos uma divertida visão dos sofrimentos enfrentados por um grupo de gordinhos "concentrados" num campo de torturas dietéticas. O texto, jogando de modo despretensioso, mas arguto, com as situações-clichê produzidas por uma das obsessões da nossa época - o culto do corpo eternamente jovem - obtinha um contato imediato com a platéia, exatamente por inverter e devolver o sentido do "besteirol": ele não está na peça, e sim no mundo infantilizado do hedonismo delirante, no fanatismo da imagem-padrão de beleza veiculada pela mídia.
PAULO HENRIQUE ALCÂNTARA é outro “rebento” desta geração: realmente “rebentou” como dramaturgo logo em seu primeiro texto, Lábios Que Beijei, encenado em 1998, sob a direção do autor. A primeira versão dessa peça surgiu no contexto de aulas práticas de dramaturgia. Desde a leitura das primeiras cenas, toda a turma ficou presa, surpresa com a habilidade do diálogo, com as despretensiosas ninharias que aos poucos, muito sutilmente, iam tecendo de modo preciso o cotidiano de um casal de meia-idade, para o qual a vida tornou-se sobretudo um exercício de recordação. Além dos méritos próprios do texto, o que muito emocionou e surpreendeu boa parte do público foi a possibilidade de um autor tão jovem imaginar e construir o universo de personagens – supostamente – tão distantes de sua experiência concreta de vida. Mas é isso exatamente que faz um dramaturgo: sua capacidade de sentir “simpatia” (no sentido dramatúrgico do termo) com os diferentes seres que sua imaginação engendra, compartilhando suas emoções. Em meu primeiro contato com a peça, fiz a Paulo Henrique um único reparo: “Não vá entregar seu texto a atores que não tenham experiência de vida e de palco! Por favor!". O autor não apenas ouviu o conselho (às vezes até os professores dizem algo que se aproveite) como deu-se ao luxo de convidar Nilda Spencer e Wilson Mello para o elenco. E o resultado todos (os privilegiados espectadores) conhecem. Seu segundo texto, Bolero, encenado em 2001, também sob a direção do autor, é outra evocação de um tempo não vivido pelo jovem dramaturgo, mas presente na herança mítica de sua geração, na qual se misturam a música e o cinema dos anos 50, velhas novelas de rádio e os folhetins de Nélson Rodrigues.
GIL VICENTE TAVARES é outro exemplo de dramaturgo-encenador, que se destaca a partir de 1999, com a montagem de Quartett, de Heiner Muller, sua peça de formatura no Bacharelado em Direção Teatral, na Escola de Teatro da UFBA, que recebeu o Prêmio COPENE de Teatro como Revelação de Diretor. A atração para a dramaturgia, no entanto, já se expressara um pouco antes, em textos curtos e densos, como Ato Único (1997), Canto Seco (1998) e Quartos (1998). Essas primeiras produções já anunciavam a chegada de um jovem autor de idéias inquietas e escrita incisiva, configurando em micro-universos de relações interpessoais a sua visão agudamente crítica da banalidade cotidiana transformada em tragédia irrespirável. Em julho de 2007, foram realizadas, em Roma, leituras dramáticas de duas de suas peças: Os Javalis e Os Amantes II. Sobre a última, em depoimento no Programa da leitura, observou Letizia Russo, tradutora do texto: “Aquilo que mais atinge em Os Amantes II é a sua capacidade desapiedada de retratar cada um de nós. Com um pequeno aperto no coração descobrimos que, nesses três personagens que andam perdidos nos poucos metros quadrados de uma casa, à procura do único contato com o mundo que para eles é possível, há o retrato do nosso vizinho, do nosso amigo, do nosso familiar, até descobrirmos que é também de nós próprios que este texto fala.” A peça, já encenada em Salvador, sob direção do autor, em 2006, provocou de imediato aquela estranheza que suscita, ainda, qualquer texto de autor “baiano” que não fale do deboche tropical ou das delícias do acarajé. Muitos, no entanto, perceberam a proximidade do jovem dramaturgo com importantes autores da vertente chamada “teatro do absurdo”, porém reinterpretada em função de nossas emergências sociais. Esta é a tônica, por exemplo, das observações do crítico italiano Rodolfo di Giammarco, feitas no programa da leitura realizada em Roma. “A fórmula da dinâmica de casal invadida por um terceiro estranho, que em Os Amantes II é um mecanismo-estímulo mais que uma intrusão-chave, tem semelhanças anômalas, mas substanciais, com autores como Harold Pinter ou Jon Fosse.”
MARCOS BARBOSA, dentre os dramaturgos brasileiros surgidos nos anos 90, é o que já conquistou maior visibilidade, em âmbito nacional e internacional, graças a montagens de dois de seus textos – Quase Nada e À Mesa – pelo Royal Court Theatre, em 2004, com direção e elenco londrinos. Mas a sua maestria na composição de situações à primeira vista simples, mesmo usuais, que vão se tornando pouco a pouco insólitas, por efeito de um diálogo que entretece falas e silêncios com igual força dramática, tornou-se perfeitamente visível para aqueles que, como eu, viram nascer o seu primeiro texto, Braseiro, em 1997, quando o autor era ainda aluno do curso de dramaturgia no Instituto Dragão do Mar, em Fortaleza, sua terra natal. Vindo para Salvador realizar sua pós-graduação na Escola de Teatro da UFBA, onde hoje é professor de dramaturgia, Barbosa continuou a produzir textos que imediatamente conquistaram não só a estima de público e de crítica, como justas premiações, a exemplo de Avental Todo Sujo de Ovo (Prêmio Carlos Carvalho, Porto Alegre, 2005) e Minha Irmã (Prêmio Paulo Pontes, Paraíba, 2001). A maturidade alcançada pelo jovem autor em poucos anos de escrita para o palco revela-se, de modo inequívoco, em sua primeira peça inspirada num fato histórico: Auto de Angicos. Encenada em Salvador, em 2003, sob a direção de Elisa Mendes, com o título (infelizmente) mudado pela produção para o óbvio Lampião e Maria Bonita, o texto ofereceu um saudável deslocamento para a expectativa de nosso público, acostumado a abordagens repetitivas do tema do cangaço. A peça nos mostra, sob uma luz nova e sutil, o famoso casal de cangaceiros que se tornou uma lenda no sertão brasileiro, nos momentos que antecedem o seu assassinato pela polícia, ocorrido em julho de 1938. Recusando estereótipos, e transformando dados históricos em fina argila para moldar ação e emoção, Marcos Barbosa constrói um espaço de confinamento e solidão para um homem e uma mulher que, apesar dos nomes célebres, surgem diante do público com a grandeza e a pequenez de todos nós, pois quando os seres são olhados bem de perto, não há tipicidade que resista.
Há que destacar a estréia, em 1998, de um texto que surpreendeu público e crítica não só por seu próprio feitio insólito, mas por ter sido concebido por uma escritora então com 19 anos: O Cego e o Louco, de CLÁUDIA BARRAL (Prêmio Braskem de Teatro, em 2001). Sobre a autora e seu primeiro texto, disse o arguto crítico Guido Guerra: “o rigor, a que se impôs na peça de estréia, carimba seu passaporte para o primeiro time da dramaturgia nacional”. Trata-se de um drama intimista e inquietante, em ato único e com chave final surpreendente, revisitando os temas inexauríveis da loucura e da solidão. Numa sala de apartamento, a autora constrói a lenta agonia de um velho pintor, agora cego, em diálogo ora irônico ora pungente com seus fantasmas, com destaque para o irmão já falecido, uma “alucinação” no plano da fábula, mas muito concreta e eficiente cenicamente. Em seus textos seguintes, Barral anuncia uma tendência crescente para matizar a tessitura dramática das personagens e situações com uma linguagem predominantemente lírica, como em O Que de Longe Parece Ser um Verso em Branco (2003) e Cordel do Amor Sem Fim (Prêmio Funarte de Dramaturgia, 2003). Em outubro de 2007, a Companhia de Teatro da UFBA encenou seu texto mais recente – O Terceiro Sinal (comemorando a reinauguração do Teatro Martim Gonçalves, a peça estreou sob a direção de Deolindo Checcucci, tendo no elenco Wilson Melo, Haydil Linhares, Sonia Rangel, Mario Gadelha e João Paranhos) – em que a jovem autora presta homenagem aos atores veteranos, criando uma situação simples e envolvente: as dúvidas e tensões que envolvem um elenco nos momentos que antecedem a estréia.
O pequeno número de dramaturgos aqui lembrados está longe de esgotar o mais significativo da produção emergente nas últimas décadas. Ainda a partir dos anos 90 surgem autores como Bertho Filho (Cacilda, 1995), Luís Sérgio Ramos (Uma prato de mingau para Helga Brown, 1995; A Bússola de Úrsula, 1996), Claudius Portugal (Não Vamos Falar Nisso Agora, 1996), Adelice Souza (Fogo Possesso, 2005; Jeremias, o Profeta da Chuva, 2008), Dinah Pereira (Memória Ferida, 2008; Na Outra Margem, 2009). Seria preciso considerar também aqueles artistas que, sendo prioritariamente atores e diretores, foram motivados a escrever suas próprias peças, como Paulo Atto (Até Delirar, 1984), Paulo Cunha (Cabaré Brasil, 1995), Ricardo Castro (1,99, 1999), Débora Moreira (Clarices, 1998; Alegria de Viver, 2009), Deolindo Checcucci (O Vôo da Asa Branca, 2000, entre muitos outros) e Luiz Marfuz (Última Sessão de Teatro, 2009).
Dentre os fatores que ajudaram a difundir a dramaturgia local, houve a abertura de uma linha de publicações, pela Secretaria de Cultura, que entre 2003 e 2007 divulgou textos de teatro aqui encenados. O selo Dramaturgia da Bahia veio tornar visível para um público mais amplo algo que os freqüentadores dos nossos teatros já conheciam: o teatro baiano vem contando com um time de dramaturgos que contribuiu para dar às nossas cenas uma fisionomia própria. Ao longo dos últimos anos, enquanto o movimento de encenação mais e mais se profissionalizava, também mais e mais dramaturgos vinham à luz dos refletores, trazendo ao palco temas e personagens que, sem negar ao público seu entretenimento – e em nome de quê, por todos os deuses, nós lhe negaríamos isso? – interpelavam criticamente o nosso cotidiano, o nosso jeito de ser e viver.
Apontar, porém, como venho fazendo, a liberdade e variedade das escolhas artísticas, junto à crescente melhoria técnica, não implica esquecer ou silenciar o muito que resta por fazer, a cada dia. Há, por exemplo, o desafio de conquistar a atenção dos professores e organizadores de currículos em nossas escolas de primeiro e segundo graus, onde hoje a literatura dramática tem papel ínfimo ou nulo, como se a invenção poética se restringisse à lírica e à narrativa. Não me refiro aos professores de teatro ou “de artes”, mas aos que ensinam literatura brasileira aos nossos jovens. Como aproximá-los do rico, vasto e para eles ainda inexplorado território da dramaturgia brasileira? Como fazê-los perceber o quanto seus alunos teriam a aprender sobre geografia, história, língua portuguesa, diversidades regionais, relações políticas e econômicas – e mais: aprender ludicamente, prazerosamente – com a simples leitura das peças (ou talvez exercícios de dramatização, em sala de aula) de autores como José de Alencar, Arthur Azevedo, Silveira Sampaio, Dias Gomes, Ariano Suassuna, Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Viana Filho, Jorge Andrade, Naum Alves de Souza, Cláudio Simões, Marcos Barbosa? Seria saudável até mesmo o “teatro desagradável” de Nélson Rodrigues, pois se é para defender os jovens corações e mentes do fel da ironia, por que são eles convidados, pelos currículos escolares, a ler Machado de Assis e Graciliano Ramos?
Sem dúvida, repito, há batalhas a vencer em muitas outras frentes. Mas isso não implica em instalar-se no curioso lamento do que “ainda não temos” ou “ainda não somos”, como se existisse alguma meta artística ideal a atingir! Ao fim de cada ato, sempre podemos escolher se vamos nos instalar na falta ou festejar a alegria dos ganhos possíveis e visíveis. Para o bem e para o mal, uma ação puxa outras, em várias direções, que por sua vez ampliam, sustentam, favorecem, ou então contrariam, combatem, negam outras várias ações; essa é a dramaturgia que a vida nos ensina: a cena pode mudar a cada instante, por força das ações que desencadeamos.
Para aqueles observadores que se mantêm fiéis a formas e fórmulas de um teatro aprovado pelos pareceres do tempo, há uma tendência a fazer tábua rasa das realizações locais, pelo modo por vezes caótico de alguns dos nossos artistas inventarem seu próprio caminho. Mas a única certeza é que não faremos o “grande teatro” de nenhum tempo ou lugar, outra vez. Isso é algo simplesmente vedado ao esforço humano. O passado brilha para nós como uma vasta escola onde aprendemos a emular a coragem, a alegria, a independência dos grandes criadores. Mas não os seus feitos, que são precisamente isso, “feitos”, coisas realizadas, e à arte interessa o que está por fazer. Nenhum de nós sabe qual será o teatro do século XXI, só que alguns desconhecem o próprio fato de não saber. Se soubéssemos, qual seria a graça de continuar tentando, de continuar engendrando nossas falas e cenas?
De tentativa em tentativa, há um Brasil que se encena nos palcos da Bahia, e nesse espaço vamos refletindo sobre quem somos, e somos refletidos pelas visões de nosso desejo. Porque não há que procurar a nossa identidade, como um documento perdido; nós a construímos, nós a escrevemos, nós a compomos, nós a encenamos, nós a pintamos na imagem que queremos ter de nós mesmos. De tentativa em tentativa, pois, vamos fazendo a arte que nos compete inventar, e que ao mesmo tempo reinventa e produz nossa identidade sempre múltipla e cambiante.
Em suma: o teatro que hoje se faz na Bahia pode ser rotulado, no máximo, pura e simplesmente, de teatro brasileiro. Com todo direito a ser vário e multiforme como nosso país.
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Um exemplo recente desse enfoque centralizado na produção do sul do país é o Dicionário de Teatro Brasileiro, editado em São Paulo, pela Perspectiva, em 2006. Na Bahia, um trabalho pioneiro constitui exceção dentro do quadro que descrevo: o livro de Ana Maria Franco, Teatro na Bahia através da imprensa, de 1994, que faz um levantamento exaustivo, a partir de jornais baianos, de todos os espetáculos encenados em Salvador, de 1900 a 1990.
Os exemplos são bem conhecidos: A Bofetada, com mais de 20 anos em cartaz, obtendo grande sucesso de público em Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e outras capitais brasileiras; Os Cafajestes, com texto de Ana Franco e com o mesmo diretor de A Bofetada, Fernando Guerreiro, que obteve também boa repercussão e prêmios no sul do país; Recital da Novíssima Poesia Baiana, dirigido por Paulo Dourado, com o grupo Los Catedrásticos, que ao longo de doze anos levou às gargalhadas o público de cidades brasileiras com pouca familiaridade com os textos desse estranhíssimo recital: as letras das canções da chamada “ axé music” baiana.
MAGALDI, Sábato. Panorama doTeatro Brasileiro. 3ed. São Paulo: Global, 1997. p.322.
“A peça recupera e atualiza o besteirol, que já se pensava ser um gênero restrito ao período da censura pesada. (...) A Bofetada mostra que ainda é possível rir sem culpa.” SÁ, Nelson de, DIVERS/IDADE – Um guia para o teatro dos anos 90. São Paulo: HUCITEC, 1997. p. 55.
Na verdade, a dramaturgia da Bahia começou a se constituir no início dos anos 70, e alguns dos autores surgidos então permaneceram em cena nas décadas seguintes, como Ariovaldo Matos, Nélson Araújo, Jurema Penna, Ildásio Tavares, Deolindo Checcucci, Haydil Linhares, Ana Maria Franco e a própria autora destas linhas.
O Cego e o Louco foi apresentada ao público baiano em 1998, através de leitura dramática, com os atores José Legwoy e Harildo Deda, no Teatro Martim Gonçalves, da Escola de Teatro da UFBA. Em 2000, estreou no Teatro ACBEU, em Salvador, sob a direção de Celso Júnior.
GUERRA, Guido. Mais que as palmas da estréia. In: BARRAL, Cláudia Sampaio. O Cego e o Louco; e Outros Textos. Salvador: Edições Cidade da Bahia, 2001. p.101.