
O GRUPO DE TEATRO YUYACHKANI E A IMPERDOÁVEL PRESENÇA DA ALTERIDADE
REVISTA BOCA DE CENA 2011
Autora. Beatriz Rizk.
Tradução. Paulo Atto.

Ana Correa em "Rosa Cuchillo". Foto. Fidel Melquiades.
O Peru é um dos países que chegou à modernidade apresentando pelo menos duas vertentes teatrais enraizadas em culturas diametralmente diferentes: a crioula, que tem sua matriz na colonização espanhola e a andina, que reflete as vicissitudes do homem/da mulher indígenas, sobretudo da serra, de tradição incaica, ainda obviamente que não seja de caráter exclusivo. Enfatizamos o “pelo menos duas” porque a grande diversidade de culturas que convivem no país foi canalizada de maneira prática através do uso do castelhano e do quechua como línguas francas, sem por isto deixar de lado o aimará, apesar de a oficialidade haver pretendido desde a Colônia fazer do primeiro o idioma oficial exclusivo. Por outro lado, tal como pudemos comprovar, através de festivais e eventos teatrais durante a ultima década, a impressão que o investigador Luis Ramos-García nos deixou durante sua passagem por encontros de teatro a partir dos anos oitenta, torna-se logo realidade: “A alternativa oposta registrava agora, nas e desde as províncias – a comprovada existência de um substrato teatral que sobrevivia, mais ou menos intacto, nas festas populares e no imaginário andino desde a Colônia até a época republicana” (2001:38)
Não há dúvida, então, que apesar da perseguição oficial sistemática levada a cabo contra toda expressão cultural de origem nativa por parte dos espanhóis, detalhada em outra parte (2010), no dizer do investigador Teodoro Meneses, “sucumbiu o teatro (incaico) aparentemente, porém sobreviveu no profundo”, fragmentado e sem dúvidas ”afetado pela desconexão e o desaparecimento do primogênito foco cultural” (7). Neste sentido não apenas as formar rituais que têm a ver com o ciclo agrário seguem vivas, assim como a cosmogonia, a mitologia e a mesma história que as nutre e reforça se fazem presentes em uma dramaturgia que a partir da época contemporânea pretende abarcar o homem/a mulher andinos como cidadãos do mundo com os mesmos direitos dos demais e, o que é mais importante, com seus próprios termos.
É evidente que esta é uma das prerrogativas que animou Miguel Rubio, Teresa Ralli e outros companheiros de trabalho a fundar, em 1971, o coletivo teatral chamado Grupo Cultural YUYACHKANI (“estou pensando”, “estou recordando”, em quechua) cujas primeiras obras Puños de cobre (1972) e Allpa Rayku (Por la tierra) (1978-1979) davam conta da situação desfavorável tanto dos mineiros no centro do país, como dos camponeses, evidentemente de extração indígena, diante de uma insuficiente reforma agrária, tentada pelo governo de tendência socialista do general Juan Velasco Alvarado (1968-1975).
Por outro lado, o contexto no qual surge o grupo é marcado por grandes transformações sociais devido, principalmente, às grandes migrações andinas para as cidades, que começaram na metade do séc. XX, sobretudo para a capital, Lima, o que terá repercussões impensáveis no imaginário social do povo. Félix Reátegui, em uma resenha do livro seminal de José Matos Mar, Desborde popular y crisis del Estado, há vinte anos quando de sua publicação, assinala que o que pensamos é uma visão bastante aguda do que estava sucedendo para o período ao qual nos referimos:
Foi a história do esgotamento terminal de um Estado extremamente excludente e a passagem à aposentadoria dos excluídos. Desde a década de 1970, aproximadamente, a população rural dos Andes, principalmente - decide não apegar-se mais às regras e instituições que não foram criadas para eles nem adequadas às suas necessidades e começam a adotar formas de assentamento urbano, de ocupação profissional e de reprodução cultural que se separam e desafiam os padrões de organização instaurados pelo Estado desde o século XIX. Um Estado que revela todas as suas limitações e uma sociedade que deixa de acreditar nele, se constitui os termos do transbordamento e a crise anunciada no título da obra (2004:3-9).
O caso é que o imigrante traz consigo a sua cultura e a instala praticamente nas ruas citadinas desafiando a cultura dominante e introduzindo elementos que passam a fazer parte da paisagem urbana até converte-se em ícones “da nova identidade e do desbordamento popular” como são a “chicha”, a “carretilla” e o ambulante, etc ( Salazar del Alcázar 1990:42).
Resultam deste modo, padrões culturais que, de maneira inversa ao que há sido habitual, não apenas serão copiados pelas classes médias pauperizadas senão por elementos da pequena burguesia. Uma das obras mais representativas das primeiras migrações andinas para a cidade, com a qual o grupo ficou conhecido fora de suas fronteiras, possivelmente a mais viajada, é a criação coletiva Los músicos ambulantes (1982), sob a direção de Miguel Rubio, baseada em “Os músicos de Bremen” dos Irmãos Grimm e Os Saltimbancos de Luis Enríquez e Sergio Bardotti. Na peça, um burro andino, um cachorro nortista, uma galinha da Costa e uma gata da Selva se encontram no caminho rumo à cidade e decidem unir forças, para poderem sobreviver em meio à indiferente urbe, formando um conjunto musical.Segundo Ramos-García, a obra “se converteria em uma metáfora que simbolizava, com renovado otimismo, a utopia da unidade étnico-racial na diversidade urbano-marginal”(2001:Iiii), além de anunciar com bumbo e pratos o que se costuma chamar de “cholificação sociológica da cultura ou “andinização”, ao ficarem “todos finalmente unificados sob o ritmo chicha com o qual se conclui a peça”(Salazar Del Alcázar 1990:19)
O deslocamento interno em massa da população se ampliou consideravelmente durante a década de oitenta devido ao conflito bélico que se desencadeou quando em Ayacucho se lançou a ofensiva geral do movimento insurgente de tendência maoísta, conhecido como Sendero Luminoso. Reciclando as teorias do influente pensador José Carlos Mariatégui e levando às últimas consequências a aproximação das comunidades indígenas com o pensamento socialista-marxista, vários professores universitários, liderados por Abimael Guzmán (o “Presidente Gonzalo”) se lançaram a uma guerra sangrenta e sem motivo aparente, contra toda instituição ou indivíduo que estivesse pela frente, sem distinção étnica ou ideológica. Tanto Guzman como seus seguidores mais próximos haviam sido membros do Partido Comunista antes de se converterem em um movimento até 1969. Porém, a verdadeira ruptura com a esquerda tradicional peruana não se deu até 1982 quando se iniciou a “guerra total” contra qualquer tentativa de sistema que pudesse parecer uma “democracia burguesa” (Hinojosa 1998:78), incluindo os segmentos moderados da esquerda, aos quais os rebeldes consideravam “insuficientes” e, no pior dos casos, “revisionistas”, o que se constituía num “perigo maior” para a evolução da “guerra do povo”(Rénique 1998:318). Neste sentido, e como estabelece Steve Stern, em sua extensa coleção de ensaios sobre o movimento, “o “Sendero Luminoso” se impôs como uma força “contra” a história, incluindo a história da esquerda” (1998:262).
A mudança da sociedade peruana viria então também pela força, da serra à capital, em um avanço bélico sem precedentes, aparentemente patrocinado pelo elemento indígena. Embora esta abordagem seja rápida e desde uma perspectiva histórica, segundo não poucos estudos da vida política do país, se algo impulsionou a onda de violência foi, em primeiro lugar, as expectativas de mudanças geradas pelos abortados esforços do governo de esquerda do general Velasco Alvarado, em segundo lugar, a atitude das administrações seguintes, do general Francisco Morales Bermúdez (1975-80) e o segundo período no poder de Fernando Belaúnde Terry (1980-85), que voltaram, de maneira demasiado aberta, a favorecer as classes privilegiadas agravando o descontentamento geral e terminando com as poucas esperanças que poderiam haver sobrevivido às tentativas igualitárias de Velasco. É nas falhas sem soluções deixadas que o Sendero Luminoso se estabelece como uma vanguarda poderosa, cuja ideologia se apoiava na atitude de “arrasar para preencher”, como de fato, tratou de fazer.
A represália militar não se fez esperar e durante o período de 1983 a 1985 levou-se a cabo uma “guerra suja” que iria competir em violência com seus colegas do Cone Sul alguns anos antes. Os justiceiros, os desaparecimentos e os massacres se converteram na ordem do dia e em algumas regiões, incluindo Ayacucho, seus desmandos bem se podem equivaler com os da insurreição armada, como ficou documentado nos arquivos da Comissão da Verdade. O caso é que, em pleno governo de abertura de Alan Garcia (1985-90) e, devido em parte à eventualidade bélica que vivia o país (para muitos, de fato, chegou a parecer iminente a tomada de Lima pelos rebeldes), a economia peruana ficou em colapso até 1988.
Esta situação desesperada se capta em várias obras desta época do Grupo Yuyachkani. Dentre elas, a obra de criação coletiva Contraleviento (1989) marca o momento histórico em que a população indígena da serra se encontrava no dilema de emigrar a outras cidades (segundo dados recolhidos nesta época algumas famílias chegaram a deslocar-se até quatro vezes entre 1983 e 1984 (Coral Cordero 1998:355)), ou passar a ser bucha de canhão nas mãos das forças repressivas do Estado, ou enfrentar ativamente os avanços do Sendero Luminoso por meio das “rondas”. O conceito de “autogestão” de grande parte da população que ficou, em muitas instâncias, presa entre dois fogos,começou a se considerar uma alternativa viável ao conflito armado e daí talvez o título da peça. Segundo o diretor Rubio, o significado do título encerra o “ir contra a corrente do pessimismo e da desesperança, a necessidade de afirmar uma utopia contrária(...),aprender a voar no sentido contrário”(2001:82).
De proporções épicas por seu alcance, Contraleviento ao mesmo tempo em que se refere a um massacre de camponeses perpetrado em Soccos abarca, através da odisséia de Coya, que vai em busca de sua irmã Huaco,separadas pelas circunstâncias históricas, e de uns grãos de milho que possuem poderes mágicos (“sementes da vida”), a visão cíclica do mundo incaico.É evidente, além e apesar de toda a doutrina e ideologias importadas durante os últimos quinhentos anos, que é através de sua própria história , sua própria mitologia, onde se há que buscar apoio para seguir adiante nestes momentos tão críticos de sua existência. De novo, devido à violência generalizada em todo o país, parece cumprir-se um ciclo na história desse povo que aponta para o Apocalipse, porém no qual sobrevive a esperança aliada ao pensamento utópico andino. Segundo o já citado Salazar del Alcázar:
Apoiando-se na aparente inocuidade do discurso mítico arcaico de Contraleviento, Yuyachkani apela a um complexo jogo de equivalências onde o discurso mítico se converte em metáfora e elipse da história presente. O combate ritual de seus heróis míticos incrusta-se no áspero presente de um país convulsionado e que, como na história teatral, aposta na utopia e na esperança. Outra vez o mito volta a fundir-se com a história.(1998:44)
Com relação à essência de Coya e Huaco, os personagens de Contraleviento, nos diz Rubio
“Coya” é nosso personagem que olha para dentro, a que olha para ver e se confronta com sua irmã Huaco, a que não dorme; essas oposições se complementam em um olhar com ângulos distintos, ambas necessitam do seu contrário. O olhar para dentro é como a viagem que faz a árvore através de suas raízes para crescer para fora.(2001:83)
No que diz respeito à montagem da peça, o grupo faz uma coleta de um sem número de elementos e artefatos indígenas na encenação. Magaly Muguercia nos deixa um lúcido testemunho da mesma que vale a pena reproduzir aqui:
O desenvolvimento das imagens andino-mestiças era exuberante: a China Diaba, os lendários vampiros andinos que bebem a gordura de suas vitimas;a Virgem, o Diabo, o Arcanjo, o “Huaco [“vasilhame da cultura mochica com forma humana e a boca escancaradamente aberta”]” como máscara. O popular “equeco” andino – uma estatueta em forma de vendedor ambulante carregado de moedas, cédulas e mantimentos – se transformou em um deus de grande volume,que perambulava pelo palco e de sua manta de retalhos fazia parte a foto de um desaparecido.(1998:60)
Chama a atenção que a protagonista seja mulher, ilustrando, como assinalaram vários pesquisadores, a presença fundamental da mulher peruana na instância bélica por que passou o país nas últimas décadas. Na verdade, apesar de ter participado sempre em quase todo conflito armado, nunca a mulher havia tido um papel tão definitivo e multifuncional para o desenvolvimento da vida política peruana (Vide Carol Cordero, 1998). Também é uma afirmação da forte presença feminina no grupo que nos dará mais adiante peças como Antígona (2000), interpretada por Teresa Ralli, com texto de José Watanabe, e Rosa Cuchillo (2002), interpretada por Ana Correa, ambas sobre a direção de Rubio, que cobrem os mesmos anos da peça que abordamos aqui. A primeira é baseada nos depoimentos orais das mesmas vítimas (sobretudo mães e irmãs dos desaparecidos) das forças de repressão do Estado, ainda mais e, em função do texto grego, a peça aponta para uma reconstrução de identidade cultural em um sítio geográfico específico e em meio a um conflito bélico, transcendendo sua especificidade para converter-se em um paradigma universal de resistência passiva. Por sua parte, o conflito de Antígona, devido à ordem de Creonte de deixar ao irmão da mesma, Polinicio, sem enterro, requer especial significado no mundo andino pois se associa com a crença milenar segundo a qual quem fica desenterrado passa para o nível de besta, de ente não humano, pois não tem possibilidade de ressuscitar. Esta medida como castigo expiatório e exemplar, foi muito utilizada na região tanto pelos representantes das hegemonias incaicas como da colonial. A segunda peça, Rosa Cuchillo, é uma recriação do texto homônimo de Oscar Colchado Lucio, na qual se insere a história de Angélica Mendoza (Mama Angélica), que mesmo depois de morta segue procurando a seu filho sequestrado e desaparecido em 1983 (Rubio 2006:71).
Neste mundo andino em que ser andarilho é uma característica dos seus habitantes, desde épocas imemoriais, os espíritos e os mortos também perambulam pela área. O mito do Inkarri nos fala dos esforços que fazem os mortos para recuperar seus ossos e serem enterrados inteiros para poderem renascer. Segundo a mitologia andina, a lenda Inkarri tem como origem a execução do último inca livre Atahualpa, em 29 de agosto de 1533, nas mãos de Francisco Pizarro. Submetido ao garrote (uma espécie de estrangulamento por meio de um garrote com correntes ou cordas), algumas versões afirmam que seu corpo foi esquartejado e sepultado em diferentes partes do país, a cabeça supostamente foi enterrada debaixo do atual palácio presidencial em Lima, enquanto que seus braços ficaram em Cuzco e suas pernas em Ayacucho. O corpo do inca deverá ir crescendo debaixo da terra até que renasça com sua cabeça e neste dia ele regressará ao mundo dos vivos e vai impor a velha ordem interrompida pela violenta chegada dos espanhóis e a harmonia reinará sobre a terra. Este é um mito que evoca Julio Ortega em seu conto Adiós Ayacucho, adaptado e dirigido por Miguel Rubio, com o grupo Yuyackani, em 1990. Para Rubio, foi esclarecedor o impacto provocado no grupo de início pelo relato de Ortega: a narrativa de Ortega condensava um período em que as imagens da televisão e as primeiras páginas dos jornais nos saturavam com o macabro descobrimento das tumbas clandestinas, produto das continuas matanças produzidas pela guerra suja. Ler um texto que remexia os fundos da dor com o recurso da ironia comoveu a todos. (2006:89-90).
A peça foi montada com um só ator, Augusto Casafranca, dividido em dois personagens, o presente – ausente Alfonso Cánepa, dirigente camponês aniquilado pelas forças da ordem e um Q’olla, personagem de origem milenar, membro de um grupo de dançarinos mascarados “cuzquenhos que vão a Paucartambo”, e que usa uma máscara branca na qual só se veem os olhos, este personagem servira de intermediário entre a história particular do camponês yacucheano e o mundo físico, espiritual e mítico que o rodeia. Ana Correa se uniu à obra enfatizando através da execução de diferentes instrumentos musicais os estados de ânimo do personagem ao tempo que o complementa como uma mulher – testemunha muda (mãe, irmã, filha, companheira...) dos acontecimentos. Desde o início, sabemos que o protagonista Cánepa é um “desaparecido”, cujo corpo ausente representado por sua roupa rodeada de círios, está sendo velado no meio do palco. Os “velórios de roupa” dos desaparecidos são um ritual comum para os habitantes da região que “unem desta forma elementos de sua sensibilidade cultural e suas tradições com relação à morte de um ser querido” (Muñoz 1998:454). Transposto ao palco isto é de um impacto visual impressionante. Por seu lado, a investigadora Hortênsia Muñoz comenta a respeito desta tradição:
Especialmente nas zonas rurais da serra andina, depois de enterrar uma pessoa se costuma retornar ao lar e por as roupas do morto sobre uma mesa ou diretamente no chão e velar por cinco ou oito dias dependendo da região. O ritual termina ao se lavar (ou em alguns casos queimar) as roupas. (1998:466).
O caso é que Cánepa, acusado de terrorista, foi esquartejado e abandonado pela polícia em uma vala comum e alguns de seus restos mortais foram recolhidos em um saco plástico:
CÁNEPA: eu estive morrendo por muito tempo ou já devo ter morrido. Quando me cobriram de pedras e palha agreste, fiquei entretido pensando em minha condição de peruano crédulo. [...] comecei a deslizar, a esgueirar-me,a rodar um pouco e por fim me levantei próximo a uma árvore derrubada e queimada que eu encontrei no caminho. Comecei a subir devagar essa ladeira e quando cheguei lá em cima vi o povoado lá embaixo, escuro e vermelho. (2006:101-102).
Sua viagem fantasmagórica o levará primeiro a seu povoado em uma carroça de um leiteiro e depois a Lima “escondido em um caminhão quando se dirige à Plaza de Armas para reclamar seus ossos e termina na Catedral defronte do cadafalso onde jazem os despojos mortais de Francisco Pizarro”. Além da vida, e através da última viagem que empreende o homem, a da morte, reencontram-se conquistador e conquistado e ainda, nessas circunstâncias, o índio parece estar em desvantagem sem seus ossos. Porém há outras razões para ele estar ali; a primeira é que segundo algumas das versões do Inkarri na mitologia andina, como dissemos antes, a cabeça do índio encontra-se justamente no “Palácio de Lima” e permanece viva esperando recuperar seu corpo para realizar sua ressurreição e até que isso não aconteça não há outra possibilidade de reivindicação, dando, deste modo, uma conotação de esperança aos que, todavia anseiam ver uma luz no fim do túnel. A segunda razão é entregar uma carta de desagravo ao presidente, que a essa altura sabemos não será lida, porém sem dúvida anuncia a avalanche de documentos e testemunhos que de fato virá depois. Ainda diante da relativa indiferença com que o mundo oficial recebeu os resultados da Comissão da Verdade (Walker 2007:28), o testemunho individual de Cánepa, como o de muitos outros, contará para a posteridade.
A respeito do contexto direto da peça, ou seja, a situação dos camponeses em Ayacucho, uma das comunidades mais pobres do país e lugar onde como já dissemos se inicia a ação militar do movimento guerrilheiro Sendero Luminoso, o destino de Cánepa não pode ser mais previsível. Quando o Estado percebe o movimento armado, de início basicamente como uma mostra da perene insurgência indígena, ataca este segmento da população pelas forças da ordem, tanto do exército como da polícia. Talvez seja demasiado dizer que não poucas vezes houve uma tendência a confundir (não apenas no Peru mais em outros países da região), as organizações e iniciativas indígenas com a subversão.
Isto possivelmente é devido à reclamação que sempre fizeram as comunidades indígenas para ter autonomia própria e que soou eternamente aos ouvidos hegemônicos como uma ameaça à soberania nacional ainda que estas reclamações nunca se estabelecessem em termos separatistas e apenas como pedidos de reivindicação cultural territorial e econômica (Stavenhagem:1992:428). O caso é que o golpe militar contra a população indígena alcança no momento histórico da peça um de seus momentos mais ferozes. Ser camponês indígena era simplesmente ser suspeito de simpatizar com a guerrilha e muitos terminaram suas vidas de maneira trágica como o Cánepa de nossa história ou imigraram para a cidade em busca de proteção ou o anonimato da multidão. A socióloga Maria I. Remy, ativista em prol das organizações indígenas, observa essa triste característica da realidade peruana:
Um índio (e se de Ayacucho muito pior) era identificado como um verdadeiro ou potencial membro do Sendero Luminoso. Neste contexto, o exército atacou e ocupou os centros de populações camponesas. O medo e a desconfiança do “outro” levava qualquer soldado ao ver um índio puna usando poncho a suspeitar que tinham armas escondidas por debaixo da roupa e atirava primeiro para verificar depois. (1994:124).
De outro lado, o trabalho dos atores do grupo Yuyachkani sempre se destacou por estar baseado no trabalho corporal. Aqui, uma vez mais, é através do corpo do ator Casafranca, “como suporte e instrumento da ação que objetiva a elaboração estética [...] que se faz visível os corpos ausentes de um ethos coletivo”, recuperando metaforicamente “tantos rostos apagados” (Diéguez 2006:22). Na realidade, muito próxima da “performance política”, essa peça marca dessa maneira a rota que seguirá o grupo através de uma série de espetáculos que, como bem indica a supra-citada pesquisadora Ileana Diéguez, “entram e saem da arte” transcendendo “a dimensão estética quando são ativados para os próprios criadores papéis de participação cidadã” (22).
Na década de noventa, sob o fujimorismo (Alberto Fujimori ocupou a cadeira presidencial de 1990 até 2000, ano em que foi obrigado a renunciar dando oportunidade à eleição de seu adversário político Alejandro Toledo (2001-2006)), acabou teoricamente a luta armada contra a subversão, em especial o Sendero Luminoso, ao cair o “Presidente Gonzalo” e uma grande parte dos lideres do movimento armado, mas também introduziu, ou melhor dizendo, se recrudesceu, outro elemento inerente das “democracias neoliberais” que se espalharam por todo continente: a corrupção, que alcançou até os mais altos níveis governamentais, assim que se por uma parte, se reverteu relativamente a situação para muitos habitantes da serra ao possibilitar o regresso às suas comunidades originais, por outro trouxe consigo o ceticismo geral diante da impunidade com a qual se aprovavam os círculos hegemônicos, à luz dos atropelos legais, que tinham um espaço na cúpula do poder de maneira assídua. Tanto uma perspectiva como a outra foi transposta ao teatro.
Portanto, há uma dramaturgia sobre a volta para a serra dos seus habitantes que de lá foram desalojados pela fome e pela violência. A peça do grupo Retorno 1996, de novo sobre direção de Rubio, ilustra esta situação. Dois homens se encontram em um cruzamento desolado, cujos únicos elementos visíveis são uma enorme cruz de madeira recostada em um dos lados e um monte de pedras no chão. Aparentemente, faz tempo que estão ali à espera de não se sabe o quê e nem de quem. As primeiras frases da peça murmuradas por um dos indivíduos: “muitas vezes estive neste caminho... agora distante tenho uma lembrança... agora só a vida vai saber se esse caminho vai ou vem...”, dá-nos a ambiguidade pautada no contexto em que se fundamenta a ação da peça. É desnecessário pensar muito para reconhecer o traço de Esperando Godot de Samuel Beckett.
De maneira similar ao diálogo entre o Estragon e o Vladimir beckettianos, estes dois homens jogam, debatem, defecam, espantam a “morte” com “carajos” bem pronunciados e se desesperam. Mas se a simbologia cristã estava evocada na obra do autor irlandês aqui com a cruz literalmente recostada se faz evidente, ainda que as alusões ao “padre” que lhes ensinou “a caminhar”, porém “não a esperar”, possam ser associadas à essência superior divina como a carne de seus progenitores e ate à mitologia local que se nutre como vimos em algumas das peças anteriores do grupo.
Estes náufragos em plena serra que miram o ar a ver se alguma missão vem a resgatá-los, também se sentem condenados, ainda que tenham plena consciência que pelo inferno já passaram e conseguiram escapar. Por outro lado, diferentemente do citado texto europeu, o contexto histórico/social da peça se estabelece de maneira real sobretudo quando um dos personagens carregando a cruz nas costas percorre um caminho que pouco tem a ver com o Gólgota, como ele mesmo adverte:
Sinos dançando
um manto sangrando
um campo de verdade
alguém que vai e vem
homens caminhando
uma mulher que foge com uma galinha nas costas
uma janela que se abre
uma porta que se fecha
um vidro que se quebra
helicópteros fazendo redemoinhos
cruzes em todos os caminhos
uma pedra que racha
cães que latem
duas plantas que conversam
um retábulo gigante
dois salgueiros que cantam
um pássaro que voa.
É o caminho dos fugitivos da guerra que estavam voltando, às suas comunidades, amparados por programas oficiais. “Migração ao contrário”, nos disse Magaly Muguercia, “promovida pelo governo com pragmatismo, sem levar em conta o transtorno cultural a que esse movimento de reconstituição implica (1998:63). No entanto ao final da peça, em vez de seguir esperando indefinidamente com renovada fé, como se sugere em Beckett, há aqui uma tentativa de subversão de métodos: os personagens derrubam a cruz, jogam água e finalmente tocam fogo nela. Diga-se de passagem, não existe desassossego nesta renúncia simbólica ao que foi o suporte tradicional espiritual das massas oprimidas desde que o cristianismo fez a sua aparição no continente latino americano, mais um fôlego para a iniciativa individual, como demonstram as últimas palavras na peça de um destes sobreviventes: “que importa saber se vamos ou vimos...senão o que vamos fazer quando chegarmos...”.
Outra é a leitura de Santiago (2000) na qual o grupo regressa à religiosidade popular e à origem do sincretismo religioso que aconteceu na Conquista, tendo em conta que por detrás das divindades cristãs e sua liturgia se camuflaram os ritos de origem indígenas com relativo sucesso. Portanto, não se trata de um teatro em branco e preto (ou melhor dizendo, branco e indígena) mas uma visão de caráter heterogênea que dá o contraste, de passagem, com o falso conceito de uma mestiçagem homogênea. Aqui se trata da representação de uma realidade híbrida que fala de trans-nacionalismos e de sincretismos simbólicos que problematizam qualquer leitura simplista ou estereotipada. Em uma igreja de um povoado desolado pela violência civil estão três personagens: o mordomo de origem espanhola, sua empregada mestiça e aparente zelador do templo, um indígena, que se preparam para tirar a estátua do santo padroeiro do lugar: Santiago Apóstolo, para comemorar depois de muito tempo a festa do padroeiro. O conflito da peça está representado pela posição dos três diante do que significa, no presente, a gigantesca estátua do apóstolo, com cavalo e tudo, ao qual se credita uma intervenção divina na vitória dos espanhóis sobre os árabes na Espanha e por associação sobre todos os infiéis incluindo “índios” na América. Evidente que o grupo está reiterando comportamentos humanos em qualquer caso e neste contexto são atávicos pois, indubitavelmente, a peça representa esse passado que não termina de ir-se, o da colonização, pois não apenas faz parte da história senão o que é mais importante,de uma identidade cultural.
Por outro lado, estão reconhecendo que existe um presente indígena, que por mais desassociado que esteja de seus gloriosos antepassados, segue aí à vista de todo mundo. E, neste sentido, quem sabe não haja nada mais apropriado que as festas populares para ressaltar o papel que “a memória” – tanto a individual como a coletiva – desempenha na construção da(s) história(s) e da identidade(s).
A entrada do neoliberalismo que se identifica nas últimas décadas do século XX, como já mencionamos antes, trouxe consigo a globalização da qual nenhum país da região pode estar fora. Não há dúvida de que a confrontação entre o global e a singularidade histórica começa a produzir discursos que se, por um lado, estão sinalizando a tendência e o oposto de toda a identidade forjada desde cima, por principio como em grande parte aconteceu em todo o continente, uma cultura vai se “inserindo” na outra, com símbolos e modelos que vêm de fora, com o qual se vai tensionando o que é próprio pois é óbvio que as utopias cotidianas já não se forjam no especo geopolítico tradicional nem em suas respectivas identidades culturais. O sentido, por exemplo, de que toda decisão política surge de um núcleo central doméstico, através de disposições nacionais, está sendo mediatizado por forças que veem de fora.
Daí que a pergunta quase retórica seria qual pode ser o verdadeiro poder que emana o setor executivo de uma nação em um mundo manipulado pelo mercado e pela globalização? Diante deste dilema se passou em grande medida a um processo de despolitização que por sua vez propicia de maneira até contraditória, uma maior participação por parte do individuo. “Despolitizado” não quer dizer “apolítico”; é evidente que mesmo que muitas das propostas cênicas na América Latina já não sigam o velho esquema direita-esquerda da prática política onde se situava todo o discurso contra-hegemônico, seguem sendo absolutamente questionadoras porém contra “outros” centros hegemônicos que nem necessária nem reconhecidamente estão situados dentro do território nacional; neste sentido, as mudanças efetuadas pela globalização ainda que não tenham entrado por meios “políticos”, tendo em conta os três campos principais pelos quais se inseriu – o mercado, a informática e a mídia – tem afetado a visão política do individuo, na maneira como encara a vida cotidiana e sobretudo como se posiciona ele ou ela diante da invasão ou da aceitação de modelos estrangeiros. Não podemos esquecer que a “nova ordem das coisas” é uma na qual em muitas instâncias diante do assédio aos quais as culturas estão sendo submetidas, a globalização e sua reação, a regionalização (ou “localização”), são parte de um mesmo processo. Por outro lado, não há duvidas de que ao começar um novo milênio a América Latina, em maior ou menor grau como o resto do mundo, fez sua entrada definitiva no mercado internacional. Um habitante das grandes cidades latino americanas não difere de seus contemporâneos, de qualquer cidade do primeiro mundo com relação à sua participação no “mercado global das mensagens e símbolos cuja gramática latente pertence à hegemonia norte-americana sobre o imaginário de grande parte da humanidade”(Brunner 1995:41).
É este processo de aculturação que começa a insinuar-se na América Latina? Alguns observadores afirmam positivamente (J.J. Vasquez 1996), e é evidente que alguns grupos como o Yuyachkani responderam ao desafio que sugere a pergunta. Serenata (1995), outro espetáculo de criação coletiva parece que se orienta para essa direção. Na peça, um casal utilizando duas camas como única cenografia, enfrenta a realidade de uma vida de aparências, vazia, ainda que inquietantemente cheia de imagens extraídas da cultura popular norte-americana (as séries de televisão tipo I Love Lucy, o cinema mudo, etc.), que vão distorcendo a sua percepção da realidade. Contudo, através também de citações textuais, de gestos, de pequenos detalhes que preenchem a vida diária se começa a filtrar outra realidade que fala de uma essência mais profunda do que a que se percebe superficialmente, na qual exercem um papel importante as divergências entre o domínio público e o privado. Neste sentido, Serenata pode ser o resultado da tensão entre esses dois domínios ou talvez da reorganização dos mesmos sobre outros campos: o do domínio público, cuja hegemonia parece residir nos discursos globalizantes dos meios de comunicação, que buscam apagar fronteiras étnicas e raciais entre outras, uniformizando gostos e expectativas, segundo os modelos impostos pelos Estados Unidos: e o do domínio privado, no qual a necessidade parece se consolidar em um pensamento crítico e até utópico, de marca própria, que vá competir com o primeiro no campo do cultural, do social e, sobretudo, no campo político.
Agora, pelo caminho da regionalização, que pode ser muito bem ser o outro lado da moeda da globalização, além do compromisso com a realidade em volta, porém com a ênfase posta no indivíduo colocado em um mundo convertido em encruzilhadas sem saída e não necessariamente como representante de uma coletividade, se sobressai a peça No me toquem esse valse no início da década de noventa. Os personagens, Amanda e Abelardo, regressam em espírito ao que aparentemente foi o cenário dos melhores momentos de suas vidas, um café em ruínas no qual apresentavam um repertório de canções populares inspiradas na poesia de Leon Felipe, Jorge Manrique e Shakespeare entre outros. Através das canções, nesta “representação”, certamente estática (ela está presa a uma cadeira de rodas e ele enfiado até o peito por de trás de tambores e de uma bateria). E partindo da exclusiva capacidade cênica dos atores Rebeca Ralli e Julian Vargas, a peça se desenvolve oscilando entre o real e o irreal, o grotesco e o alucinante, criando uma atmosfera carregada de momentos mágicos que consegue envolver aos espectadores por igual. Sendo uma parábola da situação do indivíduo em meio a duas frentes de combate ou, como o próprio grupo assinala no programa da peça, “uma visão expressionista da violência, da falta de comunicação, da opressão e do mundo do que é falso”; a peça representa uma ruptura na trajetória de um discurso modernista, elaborado ao longo de vinte anos no qual participaram com o olhar na direção na luta de classes para alcançar melhorias sociais. Talvez, a chave desse novo caminho, que se abriu no trabalho coletivo do grupo, possa ser encontrada nas palavras do próprio Rubio que indicou, em uma ocasião, ao comentar a peça que “a palavra é um ato do corpo [...] o que não acontecia antes” (1993), quando o conteúdo se concentrava na ação quase épica de todos os personagens/atores em cena como veículo de uma mensagem que se tratava de transmitir.
A partir da última década se acentua um discurso mais local que vai pontuando os anais da história e aprofundando nas imagens que a comunidade criou de si mesma para refletir sobre sua particularidade com possível objetivo de resgatar aquilo que a faz diferente das demais em peças como Hecho en el Perú: Vitrinas para um Museo de la Memória (2001) e Sin título (2004), ambas criações coletivas sob a direção de Rubio. Quanto ao formato das mesmas, nas duas, o grupo experimenta a ideia da história e do material histórico como exibição. O primeiro consta de cinco vitrines nas quais estão expostos, como num Reality Show, vários protótipos do “ser peruano” em seu “habitat natural”, segundo os “horizontes de expectativas” do “outro” que fica de fora. A segunda é um verdadeiro compêndio de formas teatrais na qual se faz uma revisão da história do país com a ênfase colocada na guerra do Pacífico (1879-1883) que “continua sendo uma ferida muito forte entre os peruanos” (Rubio 2006:172).
Para concluir, deter-nos-emos em uma de suas peças mais recentes com o sugestivo título de El último ensayo, criação coletiva sobre a direção de Rubio que tivemos a oportunidade de ver em 2008. Yuyachkani nos propõe desta vez um olhar auto-reflexivo que não tem apenas a ver com eles mesmos, no contexto da trajetória de suas próprias produções artísticas, mas também, o devir histórico no qual estão envolvidos como cidadãos do momento presente. Desde o início dessa peça vão se projetando na parede do fundo do palco uma sequência de fotografias de “líderes” começando com Che Guevara, seguidas por figuras nacionais como o mencionado Mariátegui, aos quais se sucedem personagens como Hugo Chávez e Raúl Reyes, o chefe das FARC que foi assassinado, até culminar com George Bush entre outros. Fica evidente o caráter cíclico da história que estamos “presenciando” e que logo vai se “convertendo em um pesadelo”, como dirá logo um dos personagens, se levamos em conta que todos estes “líderes” pretendiam, e alguns ainda pretendem o mesmo; ou seja, no princípio mudar o mundo “democratizando-o” (os métodos é que variam).
Uma sensação de absurdo parece que vai se apoderando também dos personagens/atores que estão representando/ensaiando, aparentemente pela última vez uma obra inacabada, ou interrompida pelas pequenas batalhas cotidianas entre eles mesmos como um microcosmo desse lado de fora que em última instância, parece de maneira definitiva, eles já não podem acessar. Logo nos invade o pressentimento que a tragédia do “ser peruano” consiste nessa dicotomia que se resolve em crioulo versus indígena/litoral versus serra, com todas as suas variações de rigor que se impõem diante de qualquer representação de uma “realidade” unívoca ou que passa por ser ela. Depois de três décadas de tentar assumir essa múltipla identidade e dar-lhe abrigo, tanto no devir histórico como nos espetáculos artísticos como temos visto no desenvolvimento deste ensaio, a esse sempiterno “outro” (o elemento indígena/cholo/serrano, ou como se queira denominar), este “último ensayo” parece chegar no predicativo do impossível da tarefa. Uma das razões é sem dúvida, por ser também já em plena era da globalização, um paradigma cultural que flui; uma imagem que se desvanece diante da representação cada vez mais fetichizada, falsificada por um olhar “progressista” oficial de caráter nacionalista ainda com fins pragmáticos, para não dizer folclorizante e até turístico. Neste sentido, a imagem, paralisada e caduca, de uma Yma Súmac, prodígio nacional do canto, trajada com um vistoso vestuário inca serve para ilustrar esse jogo duplo de ser um “outro” para já desprovido de sua condição de ser e estar, converte-se em um “parecer”. Daí à sua mitificação é um passo, o que o grupo parece dar justamente para chegar à sua desconstrução.
De fato ela não apenas aparece estratificada, assim como as imagens turísticas mais populares do Peru como as das ruínas de Machu-Picchu que a acompanham no palco refletidas também na parede,como também posta em uma jaula, revertendo o olhar do “outro”, do que está do lado de fora, com fizeram na peça já mencionada Hecho em el Peru, da qual esta pode ser um epílogo metafórico. Yma Súmac, nesta ocasião, carregada com seus anos e condecorada ao máximo dá entrevistas, só que faz isso em inglês e simultaneamente é traduzida para quéchua (por um nativo). Nesta nossa época globalizada, na qual também, de passagem, se celebra a multiculturalidade parece que podemos prescindir de línguas “intermediarias” (leia-se o espanhol) dando preferência às “culturas” dos sempiternos polos opostos. Enquanto os atores brincam com ela no palco, desprovendo-se de toda máscara para interpretarem a eles mesmos. Por outro lado a coreografia grupal pede às vezes tons de personagem coletivo.
A música como em outras peças é um elemento fundamental – sem contar a execução ao vivo que demonstra o grau de profissionalismo que a equipe possui no uso dos vários instrumentos musicais que tocam -; e aqui se percebem ares andinos, sem faltar o clima da banda municipal tocando o hino nacional, valsas peruanas e até boleros. Para aqueles que seguem a trajetória do grupo, não apenas encontrarão reminiscências de Hecho em el Perú como também de outras obras que tiveram impacto em seu momento, como a também citada No me toquem esse valse, precisamente pelo recurso da música como sinalização crítica. Como compêndio de todas essas peças, este último ensayo indica, ao que pressentimos, seja uma posição chave nesses momentos críticos da história, tal como questiona um personagem: “se pode fazer um monumento a uma cadeira de rodas?” o que não apenas indica a invalidade de todo discurso ideológico extremista como também o problema da representação nas artes cênicas de uma realidade que já sabemos de maneira inexorável não chega sequer a ser o “duplo do original senão sempre a cópia” inacabada do mesmo, como afirma outro personagem.
Não há dúvida de que o grupo Yuyachkani seguirá revolvendo genealogicamente em sua realidade e nos colocando peças nas quais seu incessante questionamento de toda premissa dada como imóvel continuará, como promete o evocativo titulo de sua última incursão cênica, Com-cierto olvido (2010), que esperamos presenciar nessa nova edição do Festival de Teatro Latino Americano da Bahia, no qual justamente se está celebrando a trajetória do pioneiro grupo peruano.
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Estamos conscientes que neste esquema não entra o segmento afro-peruano cujas expressões culturais, especialmente a música como também o teatro e a literatura, começam a decolar tanto a nível nacional. quanto internacional como demonstra o êxito da chamada Associação Cultural Teatro do Milênio, com o espetáculo musical Kimbafá, já discutido em outra oportunidade. (Rizk 2008).
Se estima que o quéchua, chamado por alguns “a língua geral do Peru”, é falado por cerca de dez milhões de pessoas que habitam o Peru, Equador, Bolívia, Colômbia e alguns locais no Chile, Brasil e Argentina. O Aymará, segundo os últimos censos tantos da Bolívia, Chile e Peru é falado por cerca de um milhão e seiscentas mil pessoas. Agora de acordo com os dados do Instituto Nacional de Estatísticas e Informática (INEI), “44 línguas são faladas hoje no Peru por comunidades nativas”. Abril 18, 2007.
http://www.inei.gob.pe/siscodes/LnguasMarco.htm.
A chicha é um bom exemplo; sendo um “fenômeno artístico musical definido no Peru nos anos sessenta” deu “origem ao adjetivo ‘chicha’” que se utilizou e se utiliza “para identificar produtos culturais e condutas humanas de baixa qualidade” (Hurtado Suárez 1995:171-87). No âmbito teatral, foi estudado também por Luis Ramos-García (ver 1998 e 2001).
A “Cholificação Sociológica” é definida por Luis Ramos-García como o “processo em que a cultura criollo-castellana recebe, assimila e incorpora à sua noção de identidade nacional, características provenientes do setor cholo / indígena” (2001:lxxii).
Recordemos que, segundo Mariátequi. “o espírito comunista identificava o índio” e “ suas comunidades”, de dessa forma, “refletiam esse espírito” (1959:69, cit. por Marisoi de la Cadena 1998:38).
Na verdade, torna-se imprescindível mencionar aqui que Sendero Luminoso não foi o único grupo subversivo operando em território nacional nesse momento. Sem ir muito longe, MIRTA, o Movimento Revolucionário Tupác Amaru, liderado por Victor Polay Campos, inicia suas atividades em 1984, tendo como pano de fundo de maneira preferencial o contexto citadino. Sua ação mais conhecida foi, sem dúvida, a tomada da residência do embaixador japonês, em dezembro de 1996, levantando uma ofensiva militar que terminou com a morte de vários guerrilheiros, um dos reféns e dois membros do comando especial. Bruno Ortiz León levou este fatídico episódio da história do país ao cinema, no filme Rehenes (La toma de la embajada de Japón), em 2005.
As chamadas “rondas camponesas” foram grupos de vigilância que se organizaram originalmente para proteger o roubo de gado. Durante os primeiros anos de atividades da insurgência se transformaram em verdadeiros grupos para-militares, apoiados balisticamente inclusive pelo exército. Na verdade, sua intervenção foi definitiva na aparente derrota do senderismo (ver Starn (1999) e Yrigoyen Fajardo (2002) )
“Em 1983, o povo de Soccos, enquanto se celebrava um casamento próximo, um contingente da polícia interrompeu violentamente a comemoração. As mulheres foram violentadas, depois assassinadas. Anciãos e crianças foram postos contra uma parede e logo fuzilados”, estes são alguns detalhes dos que estavam presentes nas palavras do ativista Grahame Russell que recolheu os depoimentos de alguns sobreviventes do massacre, que deixou um saldo de mais de trinta mortos. (“A Plea About Terrorism” na Z Magazine 15.6 (2002) http://www.zmag.org/Zmag/articles/jun02russell.html).
Estamos fazendo referência ao mito do Pachacuti. Segundo a cosmogonia inca, o mito tem sua origem no inca que leva o nome de Pachacutec (séc. XIV), que “virou o mundo de cabeça para baixo”. Desde essa época pode ser identificado com as catástrofes sociais, sendo a Conquista espanhola um evidente paradigma. De vez em quando, como consequência de um transtorno violento, o mundo é abalado novamente, como ocorreu, para muita gente, durante as últimas duas décadas do século passado, com o aparecimento sobretudo do mencionado grupo subversivo Sendero Luminoso e das represálias por parte do Estado. Se considerarmos o saldo de mais de 70.000 mortos que a Comissão para a Verdade e a Justiça trouxe à luz faz algum tempo, a maioria das vítimas proveniente do setor agrário, não lhes faltava razão (“Peru 1980-2000. O desafio da Verdade e da Justiça”. 2001).
Rubio escreverá anos depois: “Antígona teve muitas motivações pensadas e acumuladas nas imagens e sensações vividas nesses anos. Agora penso que fizemos a obra para essas mulheres reais, de carne e osso, e elas estão ali no palco, no olhar, nas mãos e nos gestos de Teresa. Um texto que poderia considerado não acessível, especialmente para um público não familiarizado com o ‘teatro universal’, encontrou, através do corpo da atriz, o nexo que permite conectá-lo com a realidade conhecida pelos espectadores sem que seja necessário fazer referências explícitas” (2006:64).
Deve-se notar que no imaginário popular dos descendentes dos Incas, o mito foi revivido em cada um dos líderes indígenas que tiveram o mesmo destino que Atahualpa; sobre todo Túpac Amaru, sobrinho do anterior, que foi decapitado em 1572 pelos espanhóis e Túpac Amaru ll (José Grabriel Condorcanqui (1742-1781)), que terminou seus dias esquartejado por ordem dos mesmos na praça de Cuzco. Por outro lado, o investigador Frank Graziano relaciona o mito do Inkarrí com a poderosa metáfora da “configuração colonial de um mundo constituído em dois níveis, um acima e outro abaixo, que foram invertidos durante a conquista” (30). Não há dúvidas que por associação, dentro da cosmogonia indígena, esta metáfora é também identificada através do mito do “zorro de cima e o zorro de baixo”, popularizada por José Maria Arguedas no seu romance que leva este mesmo título a que faz referência ao grupo Yuyachkani na obra de criação coletiva Encuentro de zorros (1986).
Segundo Casafranca, a ideia de Q’olla surgiu de uma história que escutou quando era criança que “dizia que os Q’ollas, em uma de suas visitas ao povoado de Paucartambo [onde nasceu sua avó], encontraram às margens do rio a cabeça da Virgem de Carmem, que é venerada nessa comunidade. Quando chegaram ao templo foi encontrada a imagem
mutilada e, portanto, com a descoberta puderam completar seu corpo” (em Rubio 2006:147).
Ana Correa, “A não-presença: A mulher vestida de preto em Adiós Ayacucho” http://yuyachkani.org/download/lamujerdenegro.doc.
Referíamo-nos aqui à participação ativa do grupo nas atividades criadas pela Comisión de la Verdad, a partir de 2001, quando percorreram o país antecipando e apoiando com performances e atos públicos a participação das potenciais testemunhas (ver Rubio 2006 e A’Ness 2004:395-414).

Ana Correa em "Confesiones". Foto. Miguel Rubio.

Augusto Casafranca em "Adeus Ayacucho". Foto. Miguel Rubio.
