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O MAL-ESTAR DA REPRESENTAÇÃO
REVISTA BOCA DE CENA 2015

Autora. Ileana Diéguez Caballero.

De fato é difícil esquecer que o interesse ambiguo do termo “representação” é que não faz alusão somente à esfera do político, mas à do simbolismo em geral: é o ser humano como tal quem se vincula (ou não) ao mundo por meio de representações.

Eduardo Grüner (2005: 339)

A reflexão sobre a teatralidade e sua disseminação no campo das práticas sociais, precisa considerar os problemas da representação e sua situação crítica nas distintas esferas. Teatralidade e representação são dois termos que excedem o teatro. Tanto a representação quanto a teatraiidade nos transbordam e este não-limite, este “excesso” produz um profundo mal-estar para as academias acostumadas a taxonomizar e restringir. Sobretudo em um tempo no qual ficou demasiado evidente que  a representação assim como o logos paterno “se  encontra em completo desordem” (Derrida, 1997: 252).

As “pessoas de teatro”  não foram as únicas que levantaram a questão da crise da representação em um contexto de repetidas crises representacionais. Esta é uma problemática que começou a desenvolver a filosofia há vários anos –demonstrado por vários  ensaios  de Derrida, Lefebvre, Grüner- e isto responde à própria crise representacional em todas as ordens da existência: as ideias, a linguística, a política, a religião, a economia, a cultura e como parte desta última, a arte.

As relações entre o poder e sua manifestação na vida de uma comunidade-cidade-país é similar à modalidade clássica que estabelece relações hierarquizadas  entre o diretor e a cena, questão amplamente tratada por pesquisadores teatrais como Evreinov, tendo em conta as disposições cenicas que tiveram lugar durante e depois da Revolução Francesa. Estas relações também foram refletidas por vários sociólogos, entre eles Georges Balandier quem considerou que o político responde a uma escenologia; a crítica cultural Nelly Rochard quando fez referência ao golpe militar de 1973 no Chile como um “golpe de representação”  (2001: 103) e o sociólogo Eduardo Grüner, quem analisou como o pensamento político e todas as propostas das chamadas ciências sociais e humanas na Argentina perceberam a necessidade de repensar as suas categorias a partir da profunda crise iniciada em dezembro de 2001.

A representação é sempre um campo para o exercício do político e a sua análise, mais do que discutir a substituição do termo –ou o que seria o derrocamento do velho rei para impor outro-, deveria implicar uma desconstrução, uma desmontagem do uso tradicional do conceito. No entanto, essa desconstrução resultaria vã “se tivesse alguma classe de rehabilitação da imediatez, da simplicidade originária, da presença sem repetição nem delegação […] Esse prejuizo anti-representativo pode impulsionar as piores regressões”, tem advertido Derrida (1989a: 95).

A história das representações tem fundado sítios de legitimação, onde se duplicam e pretendem reforçar as presenças. A partir dos territórios da instituição política –qualquer que seja- até os palanques artísticos, a representação como conceito tem sido legitimada pelas relações entre verdade e substituição. O vínculo histórico entre presença e verdade, o que tem marcado uma cultura logocêntrica, faz parte dos contínuos debates que hoje acontecem em volta da representação. A seguinte reflexão de Foucault irrompe e provoca momento no qual estamos obcecados por saber se o que vemos é verdadeiro ou ilusório, se estamos no mundo do real ou na simulação: A função da filosofia consiste em delimitar o real da ilusão, a verdade da mentira. Mas o teatro é o mundo no qual não existe esta distinção. Não tem sentido perguntar-se se o teatro é verdadeiro, é real, é ilusório ou é enganoso, somente pelo fato de levantar a questão desaparece o teatro. Aceitar a não-diferença entre o verdadeiro e o falso, entre o real e o ilusório, é a condição fundamental do teatro (1999: 149).

Habita nesta observação uma alta carga política que dá conta das manipulações fisiológicas e muito especialmente ideológicas que tem sido esgrimidas para solenizar e institucionalizar o teatro em nome de determinada “verdade”, ao tempo que é explicitado o conflito imposto pela ilusão filosófica no terreno da arte buscando transcender as representações para alcançar uma “verdade”. Ambas as questões pontuam a necessidade de desnudar o “conflito de equivalências” (Grüner) que têm determinado o uso do conceito “representação”.

Ultrapassando a questão teatral, o debate da presença e a representação como substituição da verdade, deveriamos considerar os deslocamentos da presença e sua disseminação na diferença. A presença como deslocamento ou aparição, retorno à origem, à patria da legitimação, também sugere “a nostalgia de uma presença oculta sob a representação” (Derrida, 1989a: 103) e o enlace com as tramas da autoridade e os fundamentalismos. Esta seria a questão a ser observada no chamado retorno da teatralidade até os corpos da presença, tendo em conta que esta negatividade representacional emerge no contexto de uma crítica filosófica ao logocentrismo, ao império do autor –em qualquer das suas acepções- como Pai luminoso fundador das presenças-palavras-conceitos.

A arte atual, em particular o teatro, deveria considerar a crítica como uma escritura teológica cujo valor não parece estar na escritura mesma, mas nos ditámenes e conceitos que o pai-deus-rei transmite nela: uma escritura de referencialidades únicas, de significados transcendentes e organizada como um corpus lógico, como um sistema hierarquizado. Esta concepção tem sido exposta no campo teatral por Derrida como “a cena teológica”, em diálogo com a crítica inaugurada por Artaud a partir da primeira metade do século XIX:

Mas esta concepção do teatro a qual consiste em fazer que uns personagens sentem em um determiando número de cadeiras ou poltronas dispostas em fileira, e em contar histórias, por maravilhosas que estas forem, não é talvez a negação absoluta do teatro, […] seria mais bem a sua perversão (1969: 140).

A noção de “cena teológica” representa uma estrutura proposta e vigiada por um autor-criador que a partir da distancia exige uma representação exata do conteúdo dos seus pensamentos. Representação que é desenvolvida por intérpretes –diretores, atores, cenógrafos- quem tentam executar com fidelidade os designios de um texto dramatúrgico, estabelecendo uma relação imitativa e reprodutiva com “o real” (Derrida, 1989: 322).

Em tempos de rasuras e ensaios de parricídios dramatúrgicos, quando é proclamado o retorno à presença, é o retorno à presença de um pai/autoridade/diretor-autor? Não há como esquecer que o pai vigia sempre a escritura, qualquer escritura que for. Também não devemos esquecer a fácil passagem que comunica entre si as figuras do rei, do deus e do pai (Derrida, 1997: 112).

As figuras do poder –pai, rei ou soberano- tem sido vinculadas à presença , como no caso do sujeito falante e autor da escritura; mas também estas figuras estão ligadas à representação, como destaca Carlo Ginzburg (2001) quando se refere às sucessivas formas em que o rei morto era representado por imagens de cera –no caso dos emperadores romanos durante os séculos II e III-, um século depois era representado por imagens de madeira ou couro na França e Inglaterra e por figuras de madeira durante a época medieval. Em todos os casos estas imagens substituiam o corpo o qual não devia ser mostrado. Daí que mais do que levantar uma relação de exclusão entre presentacionalidade e representacionalidade o que está em jogo é o uso das representações –como o das presenças- ao serviço dos sistemas dominantes, mas também ao serviço de uma reconstrução das representações coletivas (Grüner, 2004: 10). A representação também é, sem reduções maniqueistas, um procedimento que possibilita as simbolizações dos outros-invisibilizados por presenças totalizadoras.

Segundo Grüner, as discussões relacionadas com as crises representacionais têm de incluir as crises dos representados: Quem são os representados, aqueles que os sistemas dominantes têm deixado de representar além de ter proibido representar para produzir um vazio representacional? Aqueles que frente às crises representacionais se reconhecem como não-inclusos “optam por incluir-se nos realia sociais irrepresentáveis”. (Grüner, 2005: 360), como acontece quando as multidões saem às ruas, aos mercados, às cidades, dando corpo real a todas as teorizações: “quando os imaginários perdem a eficâcia, os reais mais inimagináveis retornam dos subsolos da matéria amorfa e irrepresentável” (369). E esse “retorno do real forcluido” (Grüner, 2004:11) poderia ser um ato obsceno para aqueles que concebem a representação como substituição ou como aquilo  que deveria permanecer “fora da cena”. Se a historia das representações registra a existência do corpo duplo do rei e legitima a sua delegação em figurinhas ou em fotografias -as quais extendem ou amplificam a presença substituindo o corpus descomposto do poder quando não pode aparecer em cena-, os outros corpos desbordados que o poder desejaria manter “fora da cena” escrevem historias de ilegalidade para os que representam ou atuam a lei.

Problematizar a representação como espaço de diferenças – “uma diferença a qual não seria repatriável” nem reduzível a “representações da mesma coisa” (Derrida, 1989ª; 114)- convida a olhar o dispositivo representacional como deslocamento até os outros, Trata-se de explorar as funções da representação, desmontar os corpos que a seguram os quais podem produzir um efeito ou outro, tudo depende das construções específicas das apostas no jogo e as políticas do ato e do olhar; “a representação faz -às vezes- de realidade representada, assim evoca a ausência; por outro lado, faz visível a realidade representada e por isso sugere a presença”. (Ginzburg, 2001: 85).

Insisto nestas relações ambíguas e complexas, mas nunca excludentes, entre presença e representação, porque acredito que se faz necessário reconhecer  a multiplicidade de usos do dispositivo representacional. Pode se representar em ausência da presença, como aquelas figurinhas as quais representavam o corpo putrefato do rei. Ou como aqueles rituais de funus imaginarium no mundo andino nos quais se fazia vigília às roupas dos defuntos ausentes, produzindo-se a imagem funerária a qual substituia o cadáver. Deduzindo a partir destes exemplos as representações podem invocar o corpo do poder, assim como tentar dar visibilidade aos corpos borrados ou desaparecidos pelo próprio poder. Isto era invocado quando as roupas dos desaparecidos eram utilizadas para velar o corpo do ausente na despedida ritual durante os anos da guerra suja no Peru e seguindo as tradições dos rituais  ancestrais andinos.

Mas representar também pode ser representar em presenças as ausências, como quando as Madres de Plaza de Mayo portam sobre suas roupas as fotografias dos desaparecidos ou bordam seus nomes sobre os lenços brancos que cobrem as suas cabeças. Elas na praça são presenças que representam um corpo duplo, o da morte e as ausências irrecuperáveis dos filhos que nunca voltaram e o da vida que se nega ao esquecimento e persiste em seguir exercendo as políticas da memória como atos do corpo, explicitando também impossíveis reconciliações.

Os relatos e corpos invocados pela representação e a presença tem sido enfrentados no binômio “presença/vida” e “representação’posteridade”. Estas associações tem sido expostas em um vínculo político com a experiência: a segunda remete “ao poder do estabelecido e suas imagens petrificadas” nos mausoléus. A outra, “re/funda espaços públicos de vida” (Buntinx, 2005). Mas este poderia ser um pensamento maniqueista. A mesma ação que impulsiona o texto do qual procedem as citadas frases, as persistentes rondas das Madres de la Plaza de Mayo, também poderia refletir-se a partir das (re)presentações (im)possíveis as quais evocam ausências e fazem visíveis os corpors (re)presentados.

A problemática da representação como “imagem de”, meditada por Gombrich foi retomada na reflexão de Bergson, quando discorreu em 1901, no marco propiciado pela Sociedade de Filosofia:

Nossa palavra representação é uma palavra errada que, de acordo com a sua atimologia, deveria não designar nunca um objeto intelectual que se apresente ao espírito pela sua primeira vez. Haveria que reservá-la para as ideias ou as imagens que levam consigo a marca de um trabalho realizado com a interioridade pelo espírito. Isso permitiria introduzir a palavra presentação (usada da mesma forma pela psicologia inglesa) para designar de maneira geral tudo aquilo que se lhe apresenta pura e simplesmente à inteligência [cit. Em Derrida, 1989ª: 105].

Esta cita de Bergson sugere o malestar que produz o próprio conceito de representação, especialmente quando a meditação filosófica se insere na língua natural, contaminando e estranhando os conceitos; dai que, além da crise da mímese, esta problemática de forma inevitável nos lança a outras reflexões . Sobretudo se considerarmos a complexidade de referências que são invocadas na palavra representação:

A representação é de fato uma imagem ou uma ideia como imagem em/para o sujeito, uma afeição do sujeito sob a forma de uma relação com o objeto que está em aquele como cópia, quadro ou cena […] A representação não é somente essa imagem, mas na medida em que ela é essa imagem supõe que o mundo previamente tenha se constituido como mundo visível, quer dizer, em imagem não no sentido da representação reprodutiva, mas no sentido da manifestação da forma visível [Derrida, 1989ª: 95-96].

Fora do olhar platônico que situa o mundo e com ele a arte como representação degradada da ideia, tendo a physis natural como modelo, o conceito de representação de maneira alguma é tradução do conceito aristotélico de mimese com o qual tem se explicado a criação. . A arte do século XX colocou em crise a ideia da mimese como uma forma de representação a qual guardaria uma forma reprodutiva ou dependente do real. Mas a representação como acontecimento do pensamento, da linguagem e do corpo, é o dispositivo que possibilita a conformação da linguagem e do ato comunicacional. E para acrescentar o problema há que reconhecer que não temos somente representações e envios que nos0 permitam  nos comunicar com os outros em substituição das coisas, mas que também podemos ser os representantes, os enviados de outras coisas e dos outros (Derrida, 1989ª: 101) em um ato de presentificação. Esta é a dupla condição que habita no conceito de representação: o de apresentar ou de tornar-presente ou fazer-vir a presença, na apresentação; e o de restituir num segundo momento a presença em representação através de efígies e signos na ausência da coisa (92).

Quando passamos da representação como ideia ou realidade objetiva da ideia à representação como quadro no lugar da coisa mesma e à representação como delegação, como envio na presença, emerge a problemática da teatralidade a qual supõe o ato de colocar diante dos olhos e configurar imaginários. Estar em representação também é, assim como problematiza Derrida a partir de Heidegger, se colocar em cena, se mostrar, representar-de-parte-de, se fazer-visível-para, ser-antes: "Se colocando ou se situando em cena, o homem se representa a si mesmo como a cena da representação" (101). Se representar é "trair" a presença, se fazer visível, ocupar um espaço para comunicar, se expor para ser olhado pelo outro, interpelado pelo outro, me interessa pensar a teatralidade que habita na própria estrutura representacional.

A disseminação da crítica à representação -ou a crítica à mimese?- tem levado a problematizar os vínculos entre os tecidos da arte e os da realidade, as relações entre os representantes e os representados; aspecto que no caso do teatro poderia ser foco das relações entre os atores e suas personagens, entre as personagens e a realidade social, entre as figuras da ordem e os cidadãos-performers, que acolhem ou transgridem as normas. Em certas ocasiões os criadores preocupados e animados por estas fissuras tem procurado o retorno aos trabalhos com a presença, mas este impulso tem sido abordado no geral como uma estratégia formal e como uma maneira de desmontar as clássicas relações ator-personagem. Faz uns anos pensei nestas propostas como outras teatralidades que desde o conceitual e o performático tentavam traçar outras rotas fora do realismo e fora da submissão ao texto e ao exercício canônico da encenação. Mas não é somente a presença do ator a qual reafirma a transgressão do universo representacional da personagem, assim como não poderia reduzir-se a complexa crise das representações à recuperação do corporal ou o performático. Um teatro do corpo não é o teatro clamado para preencher o vazio de diferenças no qual temos mergulhado produto do teatro do racionalismo, do realismo do século XIX e das modas que se impõem desde os centros culturais. O que se problematiza, expande ou transgride não é somente a representação como dispositivo cênico, mas o corpo político de todas as formas de representação. incluindo o artista que irrompe nos espaços como traça ética -mais do que como traço estético-; não somente uma presença física, mas o ser colocado aí, um sujeito e um ethos que é exposto frente a outros além da pura fisicalidade. A presença é mais do que objetual ou corporal, não é substância ou forma pura, mas como insiste Lefebvre, um momento ou "um ato que se arrisca" (2006:282), não há presença senão por e em uma situação" (291). Em um  vínculo inevitável com a teoria do ato ético desenvolvido por Mikhail Bakhtin na sua filosofia da vida, a presença se constrói na esfera social, no espaço das representações e da linguagem, no ato triplo (eu para mim, eu para outro e outro para mim) onde se constrói a ética. Não é a fisicalidade ou a objetualidade pura aquilo que segura a saída das simulações, as repetições ou as perpetuações de uma ausência presentificada (e petrificada) por representações. É no espaço intersubjetivo e social onde se desmontam as representações e se expõem as presenças.

É o meu interesse particular  preguntar-me qual presença é aquela que invocamos ou percebemos quando olhamos as cenas de hoje, as da rua, as da arte ação e as dos teatros. Em ambos espaços há uma dimensão representacional, há dispositivos semióticos e simbólicos. Alguma coisa acontece para ser realizada frente aos outros. Somos convocados por alguém que nos configura em efêmeros espectadores e testemunhas de um fato ficcional ou real e que no entanto procura transcender o instantâneo. Nessas presenças se encontram e batem diversos tecidos: a presença como texto e a presença como textura. A presença como relato hermenêutico -o discurso de como eu vejo o outro- e a presença como testemunha ou documento. A presença como véu, a presença como ato. Mas também a representação como desvio quando na cena teatral o texto é tomado como pretexto e não se procura representar personagens, mas a própria condição de atores e no entanto pela forma na qual falam, brincam ou ironizam, reconhecemos que estamos diante de um jogo de papéis. Ou a apresentação representacional a qual apela a estratégias de simulação quando os performers fazem como que se agridessem o corpo (Gómez-Peña em O Mexterminator) e se maquiam ou marcam o corpo para reconstruí-lo como o de uma "modelo golpeada" representando "um povo golpeado e abusado que insiste em se apresentar como saudável e atrativo" (Lorena Wolffer em If She Is Mexico, Who Beat Her Up?, cit. em Ferreyra, 2000). E estes exemplos não pretendem negar de maneira alguma as múltiplas ações reais, não simuladas que são produzidas nas performances artísticas. A simulação também não é um problema, em todo caso é um elemento poético que além de todas as diferenças aproxima a arte ação (arte do comportamento ou arte da performance) às representações teatrais. Se procurarmos o retorno à presença originária não esqueçamos, como nos lembra Derrida, que "Artaud sabia que o teatro da crueldade nem começa nem termina na pureza da presença simples" (1989:340).

Os tecidos entre presença e representação disparam problematizações sobre o retorno do real no espaço da arte. Hal Foster introduziu uma visão do real como trauma, "o real que está embaixo" (2001:149). A partir do diagrama lacaniano da visualidade, Foster analisa o deslizamento na concepção do real: " da realidade como efeito da representação ao real enquanto traumático" (150). Expandindo o horizonte psico-analítico, desejo pensar o real nas irrupções do imediato; como acontecimento que procura penetrar, perfurar "a fluidez das superfícies" com as quais tem se tentado taxonomizar as estéticas pós-. Retomo o real como irrupção, da forma que foi exposto por  Maryvonne Saison (1998): effraction ou irrupção direta da realidade assim como na cena. Nem como realismo, nem como realidade construída na representação. Para esta investigadora o teatro não tem mais a aspiração de representar "a Realidade" como imagem global e coerente do mundo; pelo contrário, o teatro não para de invocar e acessar a "o real", apresentando as "realidades" segundo o ponto de vista assumido frente ao contexto (Saison, 1998:43). O real que entra ou invade, se concretiza entre o objeto e o acontecimento, entre o pedaço de realidade funcional e o conjunto de acontecimentos que tecem a vida imediata: "realidade prévia", segundo Kantor, ,em uma visão mais matérica. Na segunda metade do século passado, Tadeusz Kantor trabalhou sobre a tensão entre "a realidade do drama" e a "realidade da cena", interessado em explorar "a matéria cênica", em dissolver a ilusão "para não perder contato com o fundo que ela recobre" com "essa realidade elementar e pré-textual" (1984: 177). A superação do princípio de imitação na arte e o surgimento da "expressão da realidade pela realidade mesma", quando a "realidade prévia" se instalou nas propostas de Duchamp e em práticas artísticas -como o happening- se apropriando de ações e objetos não estéticos que no entanto eram privados das suas funções práticas para habitar em um novo espaço, foi o que Kantor chamou "a possibilidade do Real"(236). Depois de Kantor e de Fluxus, o real da vida ou da realidade cotidiana tem ido manifestando-se no campo das artes cênicas como irrupção ou perfuração da ordem poética. E esta presença do real concreto, mortal e cotidiano, tem se desenvolvido no espaço representacional da teatralidade.

Os acontecimentos do real tem funcionado como catalisadores dos espaços estéticos. A espetacularidade da sociedade tem levantado profundos desafios e transformações às ficções e discursos artísticos. Estes híbridos de situações, dispositivos e linguagens tem constituído uma "estética do collage" onde -como expressado por Nelly Richard- são misturados os "estilos da arte" e a "violenta desordem do estético" (2006: 120 y 123). Em cidades onde o corpo é exposto nu e são usadas como tangas as fotografias dos políticos -questionando assim nas ruas a incongruência da prometida representatividade social-, haveria uma espectativa de que o discurso artístico não permaneça alheio a estas reais exposições da presença as quais perfuram e mobilizam os dispositivos representacionais.

O 14 de novembro de 2006, durante a ocupação da cidade de Oaxaca pelas forças federais, a artista visual Gabriela León realizou a ação-intervenção Paseo Dominical por el Zócalo de Oaxaca. Paramentada como uma Senhora das Barricadas, com um vestido que ela mesma confeccionou a partir dos resíduos e objetos encontrados nas barricadas. Gabriela abria passo por dentre os espaços tomados pelos policiais federais. A partir do 29 de outubro, a Policia Federal Preventiva (PFP) entrou na cidade com mais de quatro mil homens, reforçados por helicópteros e tanques antimotins. As últimas barricadas foram levantadas no dia 29 de novembro.  No 25 de novembro a PFP atacou uma passeata multitudinária que pedia a retirada das forças de intervenção e a renúncia do governador Ulises Ruiz; foram feridas mais de 140 pessoas e outras cem foram detidas. Este era o violento contexto no qual Gabriela León realizou a sua ação, daí a estratégia com a qual foi concebida, como se se tratasse de uma produção midiática: criou uma empresa laranja à qual nomeou La Perrera e a qual desde aquele instante exerce funções como um "laboratório de arte re-ativo" o qual sacode a vida cultural desta cidade, pendurou cartazes em todos os cantos fazendo audição para extras atuarem em um musical que supostamente realizaria o reconhecido grupo Nine Rain para lançar seu novo album México Woke Up. O casting solicitava 3 896 extras vestidos de policiais federais; outros 2 129 vestidos de manifestantes e 1 245 como cidadãos comuns (Stallings,2007:12). E em especial, por causa da extrema insegurança à qual ela estava exposta naquele contexto, a performer  ia acompanhada de um grupo de amigos fotógrafos e videomakers os quais documentaram todo o seu movimento no centro da cidade, entre os espaços ocupados pelos protestantes e os espaços ocupados pelas forças federais. Posteriormente foi editado um video com toda a documentação visual obtida -incluindo a música de México Woke Up de Nine Rain- o qual se converteu em testemunho do inesquecível drama social vivido pelos oaxaquenhos comovendo o país todo.

Neste espaço de reflexões, no qual interessa o cruze de estratégias performáticas e re/presentacionais, os cenários e teatralidades do real, a ficcionalização do cotidiano, me interessa colocar uma ação como Paseo Dominical por el Zócalo de Oaxaca porque consegue tecer estas estratégias, pôr em diálogo os territórios da realidade e da ficção da arte e da política, da estética e da ética. Ela resume este espírito liminar no qual tenho insistido no transcurso destas páginas, quando transcendendo as coordenadas estéticas, o ato artístico é sobretudo um ato ético, um ato de enunciação e posicionamento na vida. Nela se apresenta a cidade como cenário e como lugar para a escritura dos corpos. E o espaço cívico é exposto como um lugar de confrontações, como um espaço para o desenvolvimento das ações cidadãs e da teatralidade do poder. Se Gabriela León acompanhada da sua xoloitzcuintle, consegue se movimentar pelos espaços que delimitavam a circulação na cidade, transitando tanto pelos territórios ocupados pela sociedade civil em resistência quanto por aqueles ocupados pelos militares, além de marcar esta ação como uma prática de gênero dou destaque ao dispositivo cênico e teatral como suporte para o desenvolvimento de uma performatividade como ato de cidadania. De forma lúcida, esta ação implicou discursividades as quais, na maioria das vezes, são entendidas como opostas. Nesta ação foram tecidos recursos das artes objectuais e das práticas processuais as quais tem marcado os cenários artísticos e tem se expandido inclusive, até os territórios da vida, da "realidade prévia", nas aplicações de alguns artistas contemporâneos como Antonin Artaud e Tadeusz Kantor. A relação com este último também é matérica e objectual.

O figurino de barricadas foi confeccionado a partir do detritus que foi pego nas barricadas as quais foram retiradas de forma violenta pela PFP, como documento de um estado de coisas, de uma "realidade degradada": resíduos de pnéus queimados, restos de edredões, pedaços de arames farpados e molas de colchões. Além de ser concebido como vestido para a performance, o figurino de barricadas é um documento visual, uma obra plástica para ser exposta, para testemunhar as memórias e feridas de uma comunidade. Um ano após ter sido confeccionado e usado nas ruas de Oaxaca, o figurino de barricadas foi exibido na exposição realizada na Sweeney Art Gallery da Universidade de California em Riverside (UCR), junto à série de monotipias intituladas Barricadas, nas quais a artista imprimiu as marcas dos acontecimentos como uma cartografia social da cidade.

O tecido que define hoje certos gestos artísticos revela as hibridações e negociações entre os espaços do real e os espaços poéticos. A Arte, mais do que inspirada na trama social, é inserida nela. (Borriaud, 2006:18), de maneira que hoje o real não é tratamento temático exclusivo no universo da ficção, senão que é a textura e o gesto inscrito na prática estética, encontro e também documento, presença que problematiza as estratégias de representação.

O que dá potência a estas situações poderia ser encontrado, segundo o olhar de Adorno, em "a práxis que faz a arte se aproximar de forma não refletida e além da sua própria dialética a outras coisas que já estão fora da estética" (1992:240). Este mal-estar da estética nos situa frente a outra problemática instalada pelo próprio mal-estar da representação. Para problematizar a representação haveria de pôr em ação a sentência de Adorno contra a estética da contemplação. Então será outra "estética" relacional ou implicativa a qual nos instala num espaço onde emagrecem as representações? E caso a presença puder comunicar fora da instância representacional?  "Viver é representar(se)", lembrou-nos Lefebvre, "mas também transgredir as representações" (2006: 109). No entanto a pergunta pela saída da representação é um desafio problematizado por Lefebvre quando assinala que a teoria não pretende decretar a morte das representações, mas que expõe as razões do seu poder reunindo os elementos de uma resistência à fascinação (de tal ou qual representação) (2006:111). Este pensamento nos leva a aquelas primeiras reflexões de Derrida a partir de Artaud: "Pensar a clausura da representação é pensar a potência cruel da morte e do jogo que permite à presença nascer a si mesma, gozar de si através da representação (1989: 343).

As representações encenam um tecido de ausências e presenças, "representam a presença na ausência" (Lefebvre: 109). As práticas artísticas como as práticas políticas e cidadãs, problematizam, -talvez muito mais nestes tempos- a ausência que já não pode ser restituída. E aqui o problema das representações implica no campo da memória, essa negatividade consciente -não é possível restituir a ausência- também tem contaminado as estratégias de representação. Evocar e convocar são também dois recursos para  a configuração de cenas de memórias.

Talvez em congruência com a experiência do corpo nos tempos que vivemos, a arte se enfrenta particularmente aos paradoxos da presença e da ausência. Especialmente quando a ausência é uma manifestação de uma específica "forma de política que nenhuma materialidade da escritura pode representar, e que nenhuma memória voluntária pode restaurar, sobretudo quando faltam os corpos" (Grüner, 2005: 168). Este problema gera a pergunta que tensiona e potencializa a trilogia Performance (2008-2013) concebida pelo artista peruano Emilio Santisteban: "EM UM PAÍS DE CORPOS DESAPARECIDOS QUAL O LUGAR QUE OCUPA UMA ARTE DO CORPO?". Concebido para ser realizado em espaços específicos "com história de genocídio", a performance se inscreve em atos de memória os quais se performatizam no próprio corpo do espectador ou participante. O artista fez um apelo à reverberação da pergunta na memória e na experiência dos que olham instalando-a em plotagens de vinil sobre as paredes de algumas instituições, ou inclusive escrevendo-a no interior das faixas com as quais os participantes da ação costumam cobrir os olhos. Somente quando tiravam as faixas o texto se fazia visível: "EM UM PAÍS DE CORPOS DESAPARECIDOS QUAL O LUGAR QUE OCUPA UMA ARTE DO CORPO?".

Tem se dito que a cena da teatralidade -e eu agrego: da ação e da performatividade- é configurada "entre as estruturas culturais humanas rondadas demais por fantasmas" (Carlson, 2009:11). Nestes tempos nos quais a arte e as práticas da memória tem sido contaminadas por tanta densidade espectral, o problema de como e quê representar é um grande desafio. A irreversibilidade da ausência tem gerado um modo de produção fantasmagórico o qual sugere outros horizontes liminares, outros umbrais de aproximação com a ausência e com o espectral.

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O conceito de multidão, circulado no contexto da filosofia e a teoria política italiana,  conceitualização na qual se destaca Paolo Virno e Toni Negri a partir das ideias de Spinoza, implica uma multiplicidade de sujeitos, um conjunto diferenciado. Nas palavras de Negri, “Ela encarna um dispositivo capaz de potencializar a vontade de transformar o mundo” (citado por Ladagge, 2006: 205). Me interessa destacar a ideia de Ladagge quando afirma que na atualidade o conceito de multidão aponta à disolução das formas de identificação, características da primeira modernidade” (206). Também Grüner tem retomado este conceito seguindo as ideias de Negri sobre a potência constituinte da multidão como permanente potencial de impulsos re-fundacionais (2005).

Estou pensando em dois ejemplos da cena política cubana. No caso das representações que constituem o Corpo descomposto do poder, quero me referir a uma cena fotográfica a qual circulou nas redes sociais onde umas dançarinas -em carros alegóricos no carnaval habanero-, exibiam uma típica imagem de Fidel Castro vestido de militar. Era o carnaval de agosto de 2007, dedicado aos festejos dos 81 anos do exchefe do Estado cubano, quem por razões de saúde comunicou o traspasso temporário do poder ao seu irmão no dia 31 de julio de 2006. Em contraposição ao corpo doente do exchefe do Estado nas ruas de Havana era exibida a sua fotografia como chefe militar, em uma representação exemplarizante de como “devia” ser lembrado. Outro exemplo, no caso dos corpos desbordados os quais fazem visível aquilo que o poder gostaria de manter fora da cena, é o das Damas de Blanco, quem durante suas caminhadas sinlenciosas e principalmente em Havana, portam nas suas roupas as fotografias dos familiares encerrados nos cárceres como “presos políticos” durante a chamada Primavera Negra de Cuba (marzo de 2003).

A Fonte (1917) ou o urinol de Marcel Duchamp tem sido talvez o paradigma da crise da mimese na arte do século XX, introduzindo o processo metonímico com o deslocamento de um objeto a um contexto diferente daquele ao qual pertence. Neste caso a arte opera por descontextualização. E embora não se questione o princípio criativo da mimese, o acontecimento que esta obra inaugura representa um novo conceito do artístico.

Pode ser consultado“Otras teatralidades: del teatro del cuerpo al teatro conceptual/preformativo…”, em Investigación teatral. Revista de la Asociación Mexicana de Investigación Teatral, num.5 (2004c), pp.87-95. Publicado também em: Arteamérica (2005), Revista Electrónica de Artes Visuales, Casa de las Américas, La Habana.

Me refiro específicamente às caminhadas nas quais dançam nus os integrantes do Movimiento Nacional de los 400 Pueblos em avenidas e espaços públicos da Cidade do México, em protesto –desde 2007- pelo violento despejo e desapropriação das suas terras no estado de Veracruz. Durante estas ações utilizavam as fotografias de alguns políticos para cobrir parcialmente seus corpos.

Dias antes, no 21 de outubro desse ano, 2006, esta destacada e experimental banda ofereceu um show no Teatro de la Ciudad de México para de fato lançar seu novo CD: México Woke Up.

Cachorro mexicano …AQUÍ VAI UMA NOTA NOSSA, DA TRADUÇAO / NT.

É conhecido o interesse de Kantor pela estrategia do  ready-made e do seu compromiso na arte como depósito de memórias. Os chamados “objetos kantorianos”, realizados por ele para suas criações cênicas sobrevriveram a estas. Foram concebidos como documentos artísticos da memória. Exibidos em galerias, guardados em arquivos e museus.

A exposição apresentada com o mesmo Nome, Paseo Dominical pelo Zócalo de Oaxaca, foi exibido durante os meses de outubro de 2007 e enero de 2008, com a curadoria de Tyler Stallings.

Na série Barricadas são usados arames, molas de colchões e o tecido metálico que resta dos pnéus queimados, para imprimir a sua imagem em papel feito a mão, residuos de fuligem e ferrugens fazendo às vezes de ‘tinta’. Nas esquinas inferiores do papel se observa impresso um mapa que ubica o lugar das barricadas onde foram achados estes materiais, indicado por um ponto vermelho (Stallings, 2007; 13).

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REVISTA BOCA DE CENA. ISSN-2179 2402

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