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BECKETT, LÁGRIMA E RESSECAMENTO:O TRABALHO DO ATOR NA ENCENAÇÃO DE
"COMÉDIA DO FIM"
REVISTA BOCA DE CENA I

Por. Luiz Marfuz

Quando fui convidado para dirigir a IX montagem do Núcleo do Teatro Castro Alves, em 2003 – que resultou no espetáculo Comédia do Fim, composto de 5 peças curtas de Samuel Beckett - sabia que estava diante de uma provocação, que colocava em xeque as formas usuais de trabalhar com atores; mas, ao mesmo tempo, abria-se um campo de possibilidades para explorar a poética beckettiana e escapar das armadilhas da atuação naturalista.  Afinal, tratava-se de uma montagem realizada na Bahia, com 8 atores que, em sua grande maioria, não tinham experienciado a prática dos textos do dramaturgo irlandês. Estavam juntas e num mesmo grau, as inquietações, incertezas e vontade de experimentar de encenador e elenco; ambos no fio da navalha que é enveredar-se pelos trançados da cena beckettiana.

Integram o espetáculo Comédia do Fim as peças Eu não, Improviso de Ohio, Fragmentos de teatro I, Comédia e Catástrofe, todas traduzidas pela dramaturga e escritora Cleise Mendes. O processo iniciou-se em julho de 2003, com o workshop Experimentando Beckett, realizado com 24 atores profissionais, selecionados entre 330 inscritos, junto a uma equipe composta por: Rafael Morais (técnicas de clown), Hebe Alves (preparação vocal) e Walter Rozádilla (assistência de direção). A montagem estreou em 05 de novembro, permanecendo um ano em cartaz; teve ainda cinco indicações ao Prêmio Braskem de Teatro, que destaca os espetáculos do ano na Bahia: atriz (Frieda Gutmann e Hebe Alves), direção, cenografia (Moacyr Gramacho) e espetáculo, obtendo premiação nas duas últimas categorias.

O processo de construção de Comédia do fim durou quatro meses, dividido nas seguintes fases interdependentes: (i) aulas de clown e de preparação vocal para descondicionamento dos atores e ampliação de repertório expressivo; (ii) turbilhão psicofísico (fase denominada “vale de lágrimas” pelos atores); (iii) introdução ao universo beckettiano, com exercícios vinculados aos procedimentos da montagem, especialmente o desconforto físico, a imobilidade e a contração; (iv) pesquisa da musicalidade dos textos; (v) construção da atuação pelas vias da decomposição, da fisicalização do texto e das partituras de movimento; (vi) montagem das cenas; (vii) confronto e interação dos atores com os dispositivos técnicos da montagem (cenografia, figurino, luz, som, maquiagem e adereços); (viii) Ensaios abertos ao público; (ix) estréia e (x) ajustes, temporadas e circulação.

O CARRETEL INVISÍVEL

A opção pelos ‘dramatículos’ – termo criado por Beckett para denominar as peças curtas - como eixo da encenação de Comédia do fim residia na certeza de que ali estão inculcados procedimentos radicais do autor: discursos paralelos, profunda imobilidade, depuração da palavra, fragmentação do corpo, ação decomposta e outros que consolidam um paradoxo no teatro de Beckett: é “puro teatro” e arte de fronteira, que dialoga com cinema, televisão, rádio e romance. Cleise Mendes lembra que, mesmo antes dos dramatículos, Beckett “[...] já havia minado os alicerces da dramaturgia realista, sobretudo, no ‘terremoto’ a que submete a idéia de personagem; da fala, os rangidos; do corpo, as ruínas.”

Via de regra, os dramatículos são apresentados cenicamente de forma autônoma, com pequenos intervalos entre um e outro, o que assegura não só a identidade de cada um, mas contribui para solucionar mudanças técnicas exigidas nos textos ou propostas pelas encenações. No caso de Comédia do fim, procurei traçar um fio condutor do espetáculo, rejeitando a solução peça a peça, embora com a intenção de assegurar a autonomia de cada uma delas.  Isto converge com a metáfora do “carretel invisível”, utilizada por Peter Brook, quando trata do discurso da encenação:

Quando a primeira palavra é dita, um carretel invisível começa a desenrolar-se, e a estrutura do discurso e silêncio deve então fluir inexoravelmente até o fim da última fala. Não importando o modo pela qual é representada – nem mesmo quando a ordem das cenas é reorganizada ou o texto é drasticamente cortado – essa pulsação precisa estar presente, pois uma arte da representação é a vida com a frouxidão removida.

Inicialmente, tentei criar uma estrutura que organizasse um caminho para a encenação; por exemplo, começar com os textos de Beckett que apresentavam situações mais familiares ao espectador até chegar aos procedimentos radicais; ou fracionar as peças, criando entreatos e quadros interpostos. No entanto, as tentativas de fragmentar as peças ou lhes dar um sentido unitário no conjunto do espetáculo fracassaram, pois desmontavam - sem nada a acrescentar - a complexa urdidura cênica e dramatúrgica de cada uma delas; seria como jogar explosivos num lugar já abalado por forte terremoto.

Durante algum tempo, perdurou a idéia da caixa cênica enquanto metáfora da caixa craniana, como se as imagens das peças se sucedessem na cabeça de uma “personagem”, no caso o Ouvinte, que permanecia em cena durante todo o espetáculo. A metáfora do crânio vai se conformando enquanto conceito, mas se esvazia no percurso, dadas às interferências de outros componentes, especialmente os que apontam para a impossibilidade de estabelecer uma significação fechada, que ligasse todas as cinco peças. Ainda assim, rastros desta idéia deixam faíscas no espetáculo, interferindo na composição da encenação.  

Em resumo: a montagem dos cinco dramatículos num mesmo espetáculo trouxe questões que exigiam investigação e escolhas: como dispor os cinco textos numa ordem enquanto plataforma única para todas as peças, sem feri-las na constituição interna? Como estabelecer o jogo texto-encenação, de forma a equacionar partitura dramatúrgica e liberdade da encenação; que estratégias de atuação adotar para dialogar com a experiência e a criatividade dos atores e as exigências da cena beckettiana?  Estas e outras perguntas foram uma recorrência no processo.

Na verdade, o espetáculo direcionou-se para estabelecer e solucionar problemas concretos da representação, especialmente a construção do jogo encenação-texto, tempo-ritmo e ator-cenotecnia. Em outras palavras: desenrolar o carretel invisível e articular o jogo de pulsações do espetáculo significava passar necessariamente pela solução das questões técnicas e sua inter-relação com o trabalho do ator. Isto ficou claro quando da definição da cenografia: um conjunto articulado de tapadeiras pretas deslizantes que se moviam para estabelecer o espaço de cada uma das peças e que ora ocultavam, ora revelavam os atores. De fato, a ordem das cenas se definiu pelos ditames do tempo-ritmo da montagem, das soluções técnicas e dos jogos complexos entre fracionamento e totalidade. O sentido vem depois. É o que diz Bim, em What where: “Dê sentido quem puder. Eu desligo.”

Ao final, este foi o itinerário cênico-dramatúrgico escolhido para a montagem: o silêncio inaugural do Ouvinte, compelido a escutar palavras lançadas pela Boca, no dramatículo Eu não; a fala do Leitor que consola o Ouvinte, contando-lhe, repetidamente, uma mesma história em Improviso de Ohio; a relação marcada pela aproximação e recusa entre um cego e um aleijado em Fragmentos de teatro I; as palavras mortas e esvaziadas de sentido em Comédia; a imobilidade e a manipulação do corpo de um ator pelo diretor em Catástrofe; e, antes do final, o Ouvinte que escuta sua própria voz, em off, separada do corpo, e tenta inutilmente compreendê-la e dar-lhe significado.

LÁGRIMA, RESSECAMENTO E MUSICALIDADE

O caminho da encenação pautou-se pela desfiguração e pelo fragmento, a partir da idéia de que as “personagens” beckettianas são restos, pedaços, construtos; o drama chegou a um ponto em que estes não se reconhecem mais.  Daí ter optado por uma distribuição de papéis que ignorava a bio-tipologia, descartando, inclusive, convergência de gêneros, e apostando no trabalho que privilegiava a geometria do corpo e as modulações da voz do ator. Desta forma, a composição do elenco não se submeteu ao critério de tipo físico para escolha dos papéis, o que foi acentuado, inclusive, pelo perfil heterogêneo dos atores, com matizes de formações variadas.

A preparação do elenco é pontuada, inicialmente, por uma nítida polaridade, que se traduz em duas palavras-chave: lágrima e ressecamento. A primeira denota a verticalidade do mergulho nas emoções primárias do ator, assumindo o primado da subjetividade nesta fase do processo de construção do papel - via-do-pôr. A segunda centra-se na destilação dos conteúdos emocionais em direção a uma cena filtrada, seca, despossuída de significados, marcada pela construção de uma sintaxe musical na performance do ator ou na geografia de distribuição dos movimentos espaciais mínimos – via do tirar.

A esse propósito, veja-se o que Beckett escreve num de seus últimos trabalhos: “Quando muito o mínimo dos mínimos. Maximamente menos que o mínimo dos mínimos.” Este caminho da maximização para a minimização é essencial para dar escoamento à linha subjetiva de interpretação, advinda da formação do elenco. Em decorrência, estratégias foram desenvolvidas para que os atores destilassem emoções, no limite do insuportável, mirando-se o seguinte alvo: encharcar e depois ressecar.  Com isso, situações-limite de ordem física ou psicológica são propostas, fazendo os atores maximizarem aquilo que lhes seria subtraído depois: a emoção. O objetivo era confrontá-los na região da psicologia dos sentimentos e fazê-los imaginar que isto seria a matéria prima para “construção da personagem”, quando, na verdade, o objetivo era abandonar a ilusão de que interpretariam alguma personagem. Isto fica claro na segunda fase do processo, em que se faz um tratamento direto da musicalidade do texto e da sintaxe espacial.

Esta opção converge, por um viés muito particular na montagem de Comédia do fim, com o pensamento e prática de um dos diretores-assistentes de Beckett, Walter Asmus, que não hesita em fazer uma aproximação realista entre as situações da peça e a dos atores, enquanto estratégia inicial do processo de construção da montagem, para depois abandoná-la. Ainda que a obra de Beckett se abra a inúmeras leituras, há um ponto medial no hemisfério de possibilidades cênicas de performance que se traduz na busca de um “equilíbrio delicado” entre dois pólos, como pontua Pierre Chabert, igualmente diretor-assistente de Beckett:

O estilo de interpretação [para o teatro de Beckett] reside num equilíbrio instável entre um aspecto mais realista, mais ‘verdadeiro’, e um outro mais distanciado, mais abstrato, mais formal ou musical, podendo ir até o expressionismo ou ao clownesco; eis aqui um domínio essencial em que o encenador, em conjunto com o ator, pode manifestar suas escolhas, sua sensibilidade, imprimir sua marca, afirmar sua visão.

           De fato, o “aspecto mais realista” instala-se na primeira etapa do processo de Comédia do fim, pois a segunda se distingue pelo domínio do formal e do musical. Nesse sentido, o trabalho do clown – conduzido por Rafael Morais - dá o ponto de sustentação para a perda da referencialidade e suporte ao esvaziamento da necessidade de racionalização, como acentua Schneider: “Se o encenador constrói frases sobre a significação filosófica de uma peça, pode até impressionar seus atores, mas não irá aportar nada de prático. Como, após tudo isso, [o ator] interpretar ‘o fim da história’ ou ‘o declínio da cultura ocidental’?” De modo que, sem poder amparar-se numa plataforma filosófica ou psicologizante, o ator, em Comédia do Fim, obriga-se a enfrentar situações concretas como o ato de andar, falar, ler, tocar violão, sentar, levantar, sem que lhe sejam dadas tábuas para racionalização ou justificações psicológicas.

Nesta direção, a técnica do clown é empregada mais no processo do que no resultado; não só pela caracterização formal, mas pela desnaturalização que norteia o trabalho do palhaço, que se articula com o desapego do ator às convenções ilusionistas de criação de um papel. Assim, o clown traz para a performance os seguintes elementos: contrição de gestos, acentuação da relação imobilidade-movimento, rigor disciplinar e um humor ingênuo e cruel; é um trabalho que contribui para a desreferencialização da interpretação subjetiva, mas, promove resistências, irritabilidade e aceitação, como assinala a atriz Zeca de Abreu: “A disciplina e a resistência têm muito a ver com Beckett. A gente tem de usar isso a nosso favor. Chegar ao fim para recomeçar.” Era necessário descondicionar, perder as referências conquistadas.

Na verdade, descondicionamento e perda de referências são uma constante no processo. Uma das estratégias desenvolvidas é a implosão de aspectos da formação subjetiva do elenco, cuja implicação e resultados notam-se nos depoimentos dos atores, ao final do processo: “Foi necessário fragmentar-me para me compreender por inteiro” (Luiz Pepeu); “Tive de queimar todas as convenções passadas e começar tudo do nada” (Frieda Gutmann); “A ordem é o caos. E a única forma de sobreviver a ele é mergulhando o mais fundo possível até que o oxigênio acabe” (Ipojucan Dias); “Um André morreu, outro nasceu” (André Tavares); “Desista! Não há conforto possível!” (Urias Lima); “Se existe alguma chave mais imediata, o autor a escondeu” (Marcos Machado).        

Por outro lado, há a necessidade de preparar o elenco para enfrentar o universo inóspito de Beckett pela assunção de papéis fora do convencionalismo, pois as fórmulas prontas não funcionariam.  Esse aspecto é assimilado pelos atores. No entanto, reiterações práticas da vertente psicológica - necessidade de compreensão lógica da personagem ou identificação emocional, via composição stanislavskiana -, frequentemente, incidiam na performance do intérprete, opondo-se, assim, à idéia da personagem-tornada-coisa – uma das chaves de compreensão do processo de atuação.

Ora, não se pode desconhecer esta contradição, já que é imperativo trazer para o corpo do ator as linhas de força que sustentam o espetáculo, sem as quais se instalaria uma dissociação entre concepção do encenador e performance do elenco. Por isto, as intervenções objetivavam redirecionar os atores para os princípios da montagem, como acentuei numa fase do processo: “Se vocês observarem que algo não está funcionando, não caiam na tentação do método realista de composição: fazer gênese de personagem, criar subtexto, memória emotiva etc e tal. A palavra-mestra desta fase é subtrair.” O depoimento de André Tavares, após a estréia, sintetiza bem as nervuras deste impasse: “Era muito engraçado que às vezes eu ia pra cena e queria fazer uma voz toda empostada e puxava a emoção pra vir.” E, adiante, conclui: “Em vez de me preocupar em interpretar ou representar, ou seja lá o que for, eu vou me ater no que eu tenho pra fazer aqui.”

Na cena beckettiana, certezas caem. Para o encenador paulista Rubens Rushe, uma das referências da cena beckttiana no Brasil, o processo de ensaio é “o esgotamento de todas as possibilidades, para descobrir o que está à frente”. Segundo ele, “não adianta sentar-se numa mesa e discutir Dante, Schopenhauer [...]”, pois a sensação é a de que nada se sabe, uma vez que o desconforto e a desorientação se apossam do encenador diante da obra de Beckett. Quando o diretor Walter Asmus tenta repetir o caminho de Beckett, na montagem de Esperando Godot, em 1979, em Nova York, e reconhece que falha, obriga-se a encontrar o próprio método. Isto expressa o estado de desconcerto que toma conta do encenador diante das peças do dramaturgo irlandês, mesmo quando se conhece minuciosamente suas estratégias de montagem. O contexto é outro, os atores também.  Na arte, o método é um leme para se navegar em tempestades, mas estas não são iguais. Em alto mar, nunca se sabe o desconhecido que se aproxima do barco.

PEÇA A PEÇA: O TRABALHO COM O ATOR

Já nos primeiros contatos com atores, técnicos e criadores (cenógrafo, figurinista, iluminador, maquiador, diretor musical), foram definidas as palavras-chave do processo: precisão e subtração, que significava rigor na construção das cenas, na movimentação da cenografia, na marcação cênica, na interpretação, no desenho da luz e nos deslocamentos espaciais em direção a uma cena mínima.  Para cada dramatículo, havia uma estratégia particular de abordagem, mas ecos e ressonâncias de princípios comuns rebatem em toda a encenação, tais como: contração corporal, geometria espacial rigorosa, imobilidade física, subtração de movimentos, desconforto e construção de sintaxes musicais, assegurando um direcionamento geral no trabalho com o ator.

No entanto, nada disto impediu que houvesse intercorrências no processo, ajudando a engrossar a teia de fios nervosos do trabalho de construção das cenas. De antemão, sabia que não era possível encontrar um único caminho que perpasse todas as peças, incrustando uma espécie de consciência unificadora na montagem. Ainda que haja um fio condutor, cada peça é um segmento autônomo com tessitura e padrão rítmico particulares. Também não seria possível imprimir a mesma sintaxe musical em todos os dramatículos. Como resultado, a partitura geral da montagem é composta pelos ritmos sucessivos internos e diferenciados de cada uma das peças, ao lado da fragmentação que radica no espetáculo.

O jogo entre ordenação da partitura e fragmentação põe a ordem no interior do caos e vice-versa. Por isso, a estrutura do texto se torna estratégia para se chegar à musicalidade, sem passar pela via psicológica, como observei numa das etapas dos ensaios: “Na decomposição da personagem, a gente vai trabalhar com a fragmentação. Começamos hoje com a palavra. O corpo, o ambiente, a cultura influenciam a forma de dizer de cada ator. Esta é uma boa técnica para des-significar a palavra; abrir-se à musicalidade, à sonoridade, ao ritmo. Esquecer os significados”. E assim cada peça recebe um tratamento diverso nos ensaios.

Em Improviso de Ohio, optei por decompor o alfabeto, letra a letra, escandindo as palavras para reorganizar a gramática do texto no eixo corpo-voz dos atores. Defendia, assim, o pressuposto de que aquelas frases, lidas, ditas e reditas pelo Leitor a um Ouvinte, esvaziavam-se de significados, deixando as palavras em uma possível “forma pura”. Num dos ensaios de “reaprendizado lexical”, após exaustivo trabalho de escansão das réplicas, pude dar o seguinte retorno ao ator André Tavares (o Leitor):

Você tem facilidade de usar várias caixas de ressonância. É uma qualidade, mas isto pode impedi-lo de trabalhar as palavras de forma cristalina. O domínio da técnica de escansão é essencial para depois relacioná-las com as caixas de ressonância. Temos de chegar ao osso, à depuração da palavra.

Já em Fragmentos de teatro I, escolhi inicialmente, o caminho do desordenamento da linguagem, por uma via oposta à experimentada em Improviso de Ohio: trabalhar, de forma aleatória, pedaços do texto, deslocados do contexto, com os dois atores que fariam o Cego (Luiz Pepeu) e o Aleijado (Marcos Machado) - este último em cadeira de rodas. O objetivo era começar com letras, sílabas ou palavras de qualquer parte da peça, operando-se movimentos para frente e para trás, sem observar a sintaxe gramatical, colocando na prática a técnica do fragmento; ou seja: começar a cena por “unidades mínimas”, no caso a consoante, retirada de qualquer lugar do texto.

Este método, embora eficaz enquanto descondicionamento da performance subjetiva e foco na circularidade do texto, revelou-se inadequado para a construção da cena, traçando excessiva mecanização da vocalidade e da movimentação do ator. Em outros termos: a estratégia assegurava a relação do ator com o texto, mas não imprimia caminho seguro ao conjunto: movimento, posicionamento, relação com objetos, contracenação. O que estava em jogo era descobrir e viabilizar uma forma de trabalhar o binômio movimento-imobilidade, deixando os dois com suas características e em estado de tensão.

É o que ocorre em Eu não, em que a atriz que faz a personagem Boca (Hebe Alves), oculta e comprimida pelo aparato técnico, e com a boca rigorosamente recortada pela luz do refletor, deve dizer o texto em ritmo rápido em contraste com a situação de imobilidade. Numa clara compreensão desta bifurcação corpo-linguagem, a atriz Hebe Alves expõe a dualidade do processo, ao reconhecer, em seu trabalho, o binômio anulação-presença e a partitura das vozes e ritmos justapostos nos interstícios do texto/encenação:

Meu corpo foi me guiando para fazer a Boca. Engraçado, para o público só aparece a boca, mas meu corpo está lá inteiro. [...] O trabalho foi centrado, entre outras coisas, em descobrir no texto os momentos em que ela está sendo discursiva, em que há uma narração ou quando a Boca está se dirigindo diretamente ao público. Era preciso situar todas as vozes que ela emitia. E, ainda, harmonizar com a velocidade proposta pelo diretor.

           A partitura da voz da atriz se sujeita às tensões impressas entre imobilidade corporal e movimentação excessiva dos lábios para imprimir a velocidade proposta pela encenação. Na plataforma construída para elevação da sua figura, a três metros do chão do palco, ocultada do público, exibem-se as linhas agitadas da disjunção corpo-voz. Além do mais, o trânsito nervoso entre os ritmos da fala e os do pensamento justapunha-se à interferência das múltiplas narrativas cravadas no texto: “Eu comecei a focalizar isso. E descobri que, por mais rápido que eu vá, o pensamento é ainda mais rápido”, diz Hebe.

O que está em curso é um princípio muito comum na dramaturgia e cena beckettianas: a personagem não age, é agida. E por assim o ser, é produto da linguagem que se mistura entre signos e dispositivos técnicos do espetáculo. Não por acaso, a partitura vocal deste dramatículo só se conclui após a estréia, quando se ajustam os diversos tempos-ritmos do espetáculo, do texto, da movimentação do aparato cenográfico e luminotécnico e, principalmente, o da atriz; este último ainda precisa ser desdobrado em sub-partituras, como se vê nesta indicação:

Há um elemento no texto muito presente que é a repetição. Assim como há frases que ditas seguidamente ganham um efeito poético, mas ainda estão passando despercebidas. Algumas delas podem ser feitas com rapidez, num tom um pouco mais baixo do que o habitual, a exemplo desta passagem: ‘... aquela manhã de primavera... enquanto olhava subitamente...” e aí depois entra o zumbido que perturba a recordação. Na verdade, não é você quem controla o zumbido; é o zumbido que a controla.

De igual modo, em Comédia, há articulação entre velocidade e repouso. A imobilização dos atores (Ipojucan Dias, Marcos Machado, Luiz Pepeu) dada pelo texto requer exaustivo trabalho de contração e isolamento dos movimentos do corpo para fazer sobressair o jogo rítmico das palavras, regido pela batuta do refletor, que determina entrada e saída das falas. Neste dramatículo, os três “personagens” estão imobilizados em urnas funerárias, apenas com a cabeça à mostra. Eles contam sua própria história de adultério, mas há uma indicação clara do dramaturgo: eles só falam quando a luz de um refletor (o quarto personagem) incidir sobre o rosto de cada um.  Desta forma, o triângulo amoroso, eixo da história, é esfacelado pela interpenetração das faixas de ação e interferência dos dispositivos técnicos. Os fios da trama são cortados pela lâmina do refletor.

Por conta disso, optei por acentuar o padrão sonoro do texto: reação imediata à luz, vozes quase sem entonação, ritmo rápido durante todo o tempo. O desafio era construir um discurso polifônico, que dissolvesse as vozes numa monofonia, ao tempo em que se imprimia um ritmo presto. Este ritmo é acelerado durante os ensaios, intensificando o caos na enunciação das palavras, retirando os significados da lógica da história amorosa. Na observação de Brian Knave, diretor musical do espetáculo, esta opção cria a imagem de uma “máquina da morte” que dispara palavras, diferente do tempo-ritmo que ele imaginava para a cena, desde quando leu a peça pela primeira vez:

Aquilo tudo já era uma coisa difícil de digerir e Marfuz botou uma pedra dentro do que você vai comer e isso empurrou a peça mais para o caos; um princípio de Beckett acentuado pela leitura do diretor. Não sei se é uma boa analogia, mas é como ele tivesse enfiado a comida na boca da criança e ela fosse obrigada a comer sem saber direito o que estava engolindo.

Para garantir o padrão rítmico e o ricocheteio caótico disparado pela máquina da linguagem, um metrônomo é peça-chave nos ensaios, alternando tempo, alturas de voz e velocidades como forma de experimentação, domínio do texto e aquisição da musicalidade centrada em um só leitmotiv. Além disso, ensaios são conduzidos com os atores comprimidos em caixas de madeira que cobrem todo o corpo, uso de pescoceiras e cordas, com luz forte e espelho sobre os rostos, provocando imobilidade, desconforto e privação de alguns sentidos.

Em certo momento, os atores descrevem reações físicas, derivadas do efeito das técnicas: “[...] não sinto os dedos dos pés, estou suando muito, tenho rouquidão, meu pescoço aperta, estou num bloco de cimento, não posso dobrar nada em meu corpo, as cordas atrapalham a respiração, não consigo dizer o texto [...]” Ao final, a atriz Zeca de Abreu, que iria fazer inicialmente uma das mulheres neste dramatículo, sintetiza estas reações, trazendo uma réplica do texto, numa clara ironia ao processo: “Por outro lado as coisas podem piorar.”

Com efeito, a contração do corpo do ator, já imobilizado nas urnas funerárias – transformadas pelo cenógrafo em caixas de cimento - intensifica o desconforto e, conseqüentemente, fazem ressoar a palavra. O que ocorre é que não cabia ao “personagem” decidir quando vai falar ou parar de falar. Esta é uma decisão da luz que deixa a frase interrompida. Na época, chamava a atenção para que o ator mantivesse o ar em suspensão, quando a luz não mais incidisse sobre o rosto, de forma que a respiração era essencial para assegurar o princípio: “Quando o ritmo é rápido, há uma tendência a se acelerar no começo, como se o ator quisesse acertar o tempo da luz. Não é para ter esta variação. O ritmo é um só. E ele tem de ser cortado pelo refletor.”

Estas e outras estratégias de trabalho com o ator foram desenvolvidas em processo, partindo-se do pressuposto de que cada ator e cada dramatículo requeriam procedimentos diversos, mas que alguns princípios geradores estavam presentes em todo o processo a exemplo das relações nem sempre harmoniosas dos binômios: imobilidade-movimento, fala-ação, tempo-ritmo, texto-significado, entre outros; princípios que integram o que denominei poética da implosão da cena no teatro de Beckett. Não se trata mais de uma cena explodida, em pedaços como se deu nas vanguardas européias, mas de um teatro rigorosamente calculado; como o efeito da implosão em que pequenos explosivos se articulam para promover uma demolição planejada e intencional, cujo alvo central é o próprio teatro enquanto linguagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS


           Hoje, distante quase sete anos do processo, vejo Beckett sob outros e novos prismas, além dos já desenvolvidos. Provavelmente, seguiria caminhos diferentes se fosse montar outras de suas peças, embora mantivesse muitos dos procedimentos adotados. O descondicionamento feito no início do processo, decerto, seria preservado, secundado pelo amparo das técnicas de clown, caso os atores tivessem formações similares aos que integraram o elenco de Comédia do fim. No entanto, reduziria o rigor no uso dos princípios, que se mostrou uma nota acima em algumas fases do processo e, por certo, tornou algumas passagens do espetáculo reféns de um formalismo involuntário. Transigi-los, não mutilaria a membrana de vozes, imagens e matérias da encenação.

De certo modo, os procedimentos cênicos desenvolvidos se prestam a abrir portas para a direção de atores e o enfrentamento da região espinhosa do texto beckettiano, mas podem tornar-se grilhões se usados em excesso, criando armadilhas que desafiam o jogo entre rigor e criatividade, como anuncia Pareyson, justapondo lei e invenção no fazer artístico:

De uma parte, a atividade artística é invenção, criação originalidade, isto é, liberdade, novidade, imprevisibilidade: não só não há uma lei que presida à atividade do artista e à qual ele deva conformar-se, mas, antes, a arte é tal justamente pela ausência de uma lei do gênero. De outra parte a atividade artística implica um rigor, uma legalidade, digamos mesmo, uma necessidade férrea e inviolável [...].

Reconheço que esta tensão foi permanente no processo e o resultado é fruto deste equilíbrio agitado. O rigor garante a precisão necessária à encenação e ao trabalho com os atores, principalmente no cerco à desnaturalização da atuação, na geometria da distribuição espacial e no uso do cromatismo frio das luzes; mas, fica em aberto uma aura de dependência formal de alguns princípios, que, talvez, se não aplicados em sua extensão e rigor, pudessem abrir outros rasgões e clareiras singulares no espetáculo. É uma reflexão que converge, pelo menos em seu princípio, com pensamento e prática de muitos encenadores, incluindo Beckett, cujos processos criativos de trabalho mudam de uma montagem para outra. O exemplo de Albee, enquanto encenador, é caracterizador deste modo de proceder na cena beckettiana: ora trabalha numa montagem com o método do Actor’s Studio, ora com os princípios da musicalidade e da pintura.

Toda esta discussão repousa sobre um fundo de clareza e obscuridade, que é o confronto entre a experiência artística e a insuficiência da linguagem em traduzi-la na sua completude.  Cada obra é um fenômeno singular. E os princípios de uma encenação são norteadores da ação do diretor e não regras absolutas, pois estas dialogam com inúmeros campos sígnicos que remetem a variantes corporais, físicas, sonoras e visuais e que constroem o caráter irrepetível e original da obra de arte.

Nesse sentido, uma das tarefas do encenador é dialogar e confrontar-se com a complexidade da obra beckettiana. Se as chaves da sensibilidade e do intelecto e as experiências e estratégias de encenação construídas ao longo de décadas podem ajudar nessa tarefa, então que se possa usá-las ao menos para se aproximar das portas de uma das raras certezas pronunciadas por Beckett: “A palavra-chave em minhas peças é talvez.” E enquanto este momento não chega, movemo-nos todos no espaço que resta no drama de nosso tempo, entre o horror e a beleza, a arquitetura e as ruínas. As questões se multiplicam, as respostas não bastam. “O fim está no começo e entanto continua-se.”

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A primeira montagem do Núcleo de Teatro do TCA foi em 1995, com Otelo, de Shakespeare, direção de Carmem Paternostro. A esta se seguiram: O Sonho, de Strindberg, direção Gabriel Villela; Medéia, de Eurípedes, direção Hans Ulrich-Becker; Roberto Zucco, de Koltés, direção Nehle Franke; Lábaro Estrelado, de Cleise Mendes, direção Possi Neto; Volpone, de Ben Jonson, direção Fernando Guerreiro; A Vida de Galileu, de Brecht, direção Elisa Mendes; Os Iks, baseada em O povo da montanha, de Collin Turnbull, direção Francisco Medeiros; Baile de Máscaras, texto e direção de Harold Weiss; Hamlet, de Shakespeare, direção Harildo Déda e Mestre Haroldo e seus meninos, de Athol Fugard, direção Ewald Hackler.

Comédia do fim realizou 05 temporadas, no biênio 2003/2004, sendo quatro na Sala do Coro do Teatro Castro Alves, uma no Teatro Jorge Amado, ambas em Salvador; além disso, representou a Bahia no VII Festival Recife do Teatro Nacional, em 2004, em Recife, Pernambuco.

A encenação optou por colocar em cena a figura do Ouvinte (Urias Lima). Durante todo o espetáculo, ele não emitia nenhuma palavra (a boca oculta como se fosse uma extensão da pele do rosto) e apenas ouvia e olhava o que se passava na ação das cinco peças; ao final, ouvia sua própria voz gravada e quedava-se impotente.

Veja-se, a propósito, o comentário do crítico teatral Macksen Luiz, ao dizer que existe uma  “...solidez teórica e sensibilidade cênica na escolha dos textos, que se harmonizam num conjunto de pulsões teatrais que distendem e contraem a encenação, em oscilantes fragmentações. Há uma inteireza nesse fracionamento, capaz de permitir que os cinco textos condensem um universo complexo. [...] Esses jogos sem fim, de corpos seccionados, sentidos comprometidos, falas compulsivas,estabelecem rituais cênicos que deixam à mostra antinarrativas.” MACKSEN, Luiz. Beckett chega a Salvador. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 8 jan. 2004, Caderno B, p.3.

Estes e todos os outros depoimentos de atores, equipe técnica e diretor foram retirados dos DIÁRIOS DA MONTAGEM DE COMÉDIA DE FIM, escritos entre 2003-2004, em três volumes, totalizando 1040 páginas. Quando os depoimentos não derivam desta fonte, faz-se a identificação.

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